A questão da mãe solo e crianças criadas com pais naturais ausentes é maior do que se imagina no Brasil. Pesquisa da Fundação Getúlio Vargas, entre 2012 e 2022, o número de lares chefiados por mães solteiras aumentou em 17,8%, passando de 9,6 milhões para 11,3 milhões. Isso representa um acréscimo de 1,7 milhão de domicílios nesse contexto ao longo de uma década, segundo dados levantados pelo IBGE.
O espetáculo "A Filha da Virgem" é um poderoso monólogo autobiográfico escrito e interpretado por Wanderlucy Bezerra, atriz pernambucana radicada no Rio desde 2008. A peça mergulha nas memórias da artista, revelando uma trajetória marcada por abandono, abusos, preconceitos e superação, numa narrativa que mistura dor, lirismo e força.
Atriz, autora e performer, Wanderlucy tem se destacado no cenário cultural brasileiro por sua expressividade visceral e pelo uso da arte como ferramenta de denúncia e transformação. Ela construiu uma carreira sólida através de projetos autorais que mergulham em vivências pessoais e coletivas marcadas por desigualdades, preconceito e resistência. Sua peça mais conhecida, "A Filha da Virgem", é um monólogo autobiográfico onde revisita temas delicados como abandono, abuso infantil, machismo e xenofobia com profunda sensibilidade e coragem.
Através de sua atuação, Wanderlucy dá voz a histórias silenciadas, especialmente de mulheres nordestinas e periféricas. Combinando teatro, dança e música popular nordestina, sua arte é marcada por uma estética potente e um discurso político claro. Ela não apenas representa personagens, mas denuncia estruturas sociais injustas, convidando o público à reflexão e empatia. Wanderlucy Bezerra tornou-se, assim, uma referência de artista comprometida com a verdade, a identidade e a libertação por meio da cena.
A artista decidiu tocar as cicatrizes dessas feridas em sua mais recente incursão teatral. A dramaturgia traz relatos que misturam-se a gêneros musicais tradicionais do Nordeste. O solo autobiográfico, dirigido por Sandra Calaça e Leo Carnevale com supervisão de Luiz Carlos Vasconcelos, volta ao Rio de Janeiro para novas apresentações. O espetáculo aporta na Casa de Cultura Laura Alvim, em Ipanema, para curta temporada, de 7 a 29 de maio, no Espaço Rogério Cardoso.
Uma mulher comum com uma trajetória inerente a leis e regras de comportamento comuns a muitas mulheres. Em cena, a atriz elenca as etapas da sua criação e formação que precisou vencer. São temas como o da descoberta da adoção, o bullying sofrido no colégio (por aqueles que, inclusive, deveriam protegê-la) e os diferentes tipos de assédio a que foi submetida (atos libidinosos, inclusive) tendo de impor-se às manifestações machistas (reproduzidas também pelas mulheres), aos dogmas religiosos ("Mulher tem de casar virgem") e à culpa pela morte da mãe, impugnada a ela pelo pai, em razão de ter mudado de cidade.
Wanderlucy tinha 21 anos quando se transferiu para o Rio. Veio disposta a abraçar a carreira de atriz, acalentada desde a tenra infância. Sim, a peça também trata de perseverança, coragem e resiliência. É comovente ver e ouvir o relato sobre seu primeiro trabalho no cinema. O filme em questão era "Central do Brasil", de Walter Salles, no qual a estreante contracenou de cara com uma de nossas maiores atrizes: Fernanda Montenegro.
Essa mulher não se protege sob a capa da autocomiseração e elenca também as agruras enfrentadas na vida artística, quando um papel pode estar por um triz mesmo depois da prova de figurino, entre outros percalços. Há também conquistas de outras naturezas, como a vez em que, munida das economias angariadas como professora, conheceu seis países da Europa. Wanderlucy Bezerra é interiorana e cosmopolita; tradicional e iconoclasta. Uma mulher comum, como já dito, e também incomum por sua força e determinação. Trata-se de uma mulher nordestina e genuinamente brasileira. E dura na queda, portanto.
Com classificação duração de aproximadamente 1 hora, "A Filha da Virgem" é uma obra que emociona e provoca, convidando o público a olhar com mais empatia para as histórias de tantas mulheres brasileiras que, como Wanderlucy, transformam suas cicatrizes em força e poesia.
SERVIÇO
A FILHA DA VIRGEM
Casa de Cultura Laura AlvimEspaço Rogério Cardoso (Av. Vieira Souto, 176, Ipanema)
De 7 a 29/5, às quartas e quintas (19h)
Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)