Espetáculo 'Buraquinhos' aborda o genocídio da juventude negra, mas faz da tragédia um estudo de poesia cênica
Um menino corre. Atrás dele, uma bala que nunca erra o alvo quando esse alvo tem a pele preta. A cena poderia ser mais uma entre as incontáveis notícias que atravessam o noticiário, mas em "Buraquinhos ou O Vento é Inimigo do Picumã" essa brutalidade cotidiana é tratada sob o viés do realismo fantástico. O espetáculo, em cartaz no Teatro Cacilda Becker após sete anos em cartaz em São Paulo, escolheu a leveza como arma contra o peso insuportável de uma estatística: a cada 23 minutos, um jovem negro morre no Brasil.
Jhonny Salaberg, responsável pela idealização e dramaturgia da montagem, conta que que construiu o texto a partir do conceito de Leveza proposto pelo escritor italiano Ítalo Calvino em "Seis propostas para o próximo milênio". Para Calvino, buscar a leveza é reagir ao peso do viver. "É por meio do lúdico, da leveza que falamos da importância de resistir. O fantástico existe não para maquiar a questão, mas para mostrar o absurdo e o trágico da própria vida. A ideia é convidar o público a sentir essa ferida, a olhar para o tema com a atenção e o tempo que ele merece", explica o dramaturdo.
Em cena, Ailton de Barros, Filipe Celestino e o próprio Salaberg conduzem essa travessia simbólica onde real e imaginário se fundem. A narrativa épica acompanha a fuga de um jovem negro na persistência em sobreviver numa sociedade que mira sempre no mesmo alvo. "A leveza também é uma forma de denunciar, de resistir, de lutar, de contar as nossas histórias de uma outra maneira, de resgatar nossas subjetividades e singularidades", destaca o dramaturgo.
Em "Buraquinhos" o que parece apenas estatísticas se torna humanidade para esses corpos negros. A escolha pela linguagem poética, no entanto, não ameniza ou mascara a denúncia do genocídio da juventude negra periférica, mas redimiensiona a frieza dos números com alguns questionamentos: como falar sobre a morte e ainda assim afirmar a vida? Como ressignificar o noticiário?
Escrita em 2016, a obra permanece dolorosamente atual, mas Salaberg prefere olhar para o futuro com esperança: "Pensando lá na frente, quero que essa obra seja sobre algo que passou. Que a gente olhe para ela como um rastro da história", reflete. Enquanto esse futuro não chega, o espetáculo segue lotando plateias e conquistando reconhecimento crítico. São dez prêmios acumulados nas principais premiações do teatro brasileiro, incluindo APCA, Aplauso Brasil e Prêmio da Folha de S. Paulo.
Entre as conquistas, destaca-se o APCA de Melhor Direção para Naruna Costa, que fez história ao se tornar a primeira mulher negra a receber o prêmio nessa categoria. Para a diretora, o reconhecimento é importante, mas também revelador das estruturas excludentes do teatro brasileiro. "Em mais de 30 anos do prêmio, o não reconhecimento ao trabalho de diretoras negras diz muito sobre a falta de percepção sobre essas criações. Faço teatro há mais de 20 anos no Grupo Clariô, na região periférica de São Paulo, mas meu nome só foi reconhecido quando eu passei a fazer um trabalho na região central", observa Naruna.
A temporada carioca vai até 21 de dezembro, com ingressos gratuitos. Paralelamente, Salaberg conduzirá a oficina "A escrita entre o voo e o abismo", nesta quarta e quinta-feiras (17 e 18), das 10h às 13h, também no Teatro Cacilda Becker. A atividade, destinada a 15 alunos, propõe experimentação dramatúrgica sobre narrativas que permeiam situações de abismo. Inscrições pelo link https://l1nk.dev/QY7Ym
SERVIÇO
BURAQUINHOS OU O VENTO É INIMODO DO PICUMÃ
Teatro Cacilda Becker (Rua do Catete, 338)
Até 21/12, sexta e sábado (19h) e domingo (18h) | Entrada franca