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Para lembrar Henfil: espetáculo 'Chuva na Caatinga' adapta tirinhas do cartunista para o palco

As bandeiras democráticas erguidas por Henfil nos anos de chumbo são apresentadas ao público infantojuvenil através de suas tirinhas em 'Chuva na Caatinga' | Foto: Dan Debortoli/Divulgação

Espetáculo 'Chuva na Caatinga' adapta tirinhas do cartunista para o palco, fazendo de seu humor crítico ferramenta poética de esperança

A Multifoco Companhia de Teatro completa 15 anos de trajetória com "Chuva na Caatinga", primeiro espetáculo infantojuvenil do grupo. Em cartaz no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), a montagem realiza uma livre adaptação das tirinhas do cartunista Henfil, transformando o universo gráfico do artista numa experiência que dialoga com crianças e adultos sobre temas urgentes como desigualdade social, fome e a necessidade de esperançar - bandeiras historicamente defendidas por Henfil.

O espetáculo parte de uma provocação: como transpor para o palco o humor ácido e a crítica social de Henfil, criadas sob censura da ditadura militar, mantendo a potência política sem perder a leveza necessária para atingir o público infantil? E a resposta veio através de uma costura dramatúrgica que mistura tirinhas selecionadas, textos de outras fontes e criação autoral. Clarissa Menezes, idealizadora da montagem e atriz do espetáculo, explica que o processo começou com uma tirinha específica que se tornou o fio condutor de toda a história. "A amizade entre uma ave, um cangaceiro e um bode, bem como suas personalidades e aventuras, parece ser mais facilmente entendida pelas crianças. Houve, então, um processo de pesquisa e seleção de quais tirinhas seriam utilizadas e uma costura que também misturou outros textos e criação autoral para o que atendesse melhor a encenação", conta.

Em cena, três personagens emblemáticos do universo henfiliano conduzem a narrativa: Graúna, a pequena ave de forte personalidade; Zeferina, a ingênua cangaceira; e Francisco Orelana, o bode intelectualizado. Juntos, eles empreendem uma jornada em busca de algo precioso e cada vez mais raro: o sentimento de esperança. Pelo caminho, enfrentam a fome, a seca e os desafios da convivência, descobrindo que a força coletiva é agente das mudanças.

Macaque in the trees
Tirinha do Henfil | Foto: Henfil

Viviane Pereira, atriz e fundadora da companhia, vê na Caatinga de Henfil algo além da paisagem. "A Caatinga é metáfora para falar da desigualdade social, da fome, seca e da opressão que assolam o nosso país. O pano de fundo da peça é a busca pela esperança, é dizer que essa luta pela dignidade e pela 'chuva' é uma pauta que pertence a todas e todos os brasileiros, e que 'quando a gente acredita no outro, na outra, a amizade vira força. E a força vira luta coletiva por um mundo melhor'", afirma, citando trecho do texto assinado por Clarisse Menezes e Ricardo Rocha.

A transposição do universo bidimensional das tirinhas para a tridimensionalidade do palco exigiu escolhas estéticas precisas. A direção, assinada por Ricardo Rocha e Diogo Nunes, abre mão do realismo em favor de uma linguagem corporal que evoca a estética dos quadrinhos, do desenho animado. "Abandonamos o realismo, que não se relaciona com a estética dos quadrinhos e do desenho animado, para rabiscar novos quadros na tela da cena. Performamos a temática da peça com gestos, posturas, manipulações do cenário e formas corporais que nascem do olhar atento aos traços de Henfil", detalha Palu Felipe, diretor de movimento.

Bárbara Abi-Rihan, atriz e também fundadora do grupo, identifica nas ferramentas da palhaçaria, da comédia física e das acrobacias - marca registrada da Multifoco - os caminhos para transpor o tom henfiliano ao palco. "Henfil publica sua obra num contexto de Brasil marcado pela censura, onde a graça e a ironia eram artifícios fundamentais para que se pudesse falar do que era pungente naquele momento e tentar passar batido pela repressão, o que era um feito hercúleo. Ao decidir apresentar sua obra no palco para um público de menos idade, viemos buscando quais linguagens nos ajudam a transpor o tom do Henfil para a cena", analisa.

Nascido Henrique de Souza Filho, o mineiro Henfil iniciou a carreira em 1964. Trabalhou em veículos como "O Pasquim", "Jornal do Brasil", "Estadão", "O Globo" e revista "O Cruzeiro", consolidando-se como uma das vozes mais contundentes da resistência cultural durante a ditadura militar. Hemofílico, foi um dos primeiros brasileiros a contrair o HIV e sucumbir com Aids, doença que também levaria seus irmãos, o sociólogo Hernert de Souza, o Betinho, e o músico e compositor Francisco Mário.

Trazer suas criações para o teatro infantojuvenil é, segundo a produtora executiva Fernanda Xavier, é um ato político de renovação. "'Esperançar' é o verbo que guia a narrativa, um lembrete de que, mesmo em tempos de secura, ainda há sonho, movimento e possibilidade. Inspirado nas potências da infância, o espetáculo nos convida a revisitar o olhar puro e curioso que enxerga o mundo com possibilidades infinitas. Mais do que esperar a esperança, o espetáculo fala sobre agir, caminhar e acreditar. Porque quando se sonha em companhia, tudo floresce mais fácil", comenta.

SERVIÇO

CHUVA NA CAATINGA

Centro Cultural Banco do Brasil - Teatro III (Rua Primeiro de Março, 66, Centro)

Até 1/2/2026, com interrução entre 22/12 e 16/1, sábados e domingos (16h)

Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia)