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Quando a rua invade o palco

'O Nome do Rato', com Gustavo Barbalho e Ricardo Santos, resgata histórias reais de pessoas em situação de rua para conduzir o espectador a uma reflexão sobre invisibilidade e exclusão nas sociedades modernas | Foto: Isabella Raposo/Divulgação

Espetáculo 'O Nome do Rato' transforma depoimentos reais em dramaturgia na seara do documental que questiona invisibilidades sociais

Há histórias que a cidade insiste em esconder. Corpos que atravessam calçadas como se fossem transparentes, vidas inteiras reduzidas a estatísticas ou, pior ainda, ao silêncio. É justamente desse território — onde a exclusão se naturaliza e a indiferença se torna rotina — que nasce "O Nome do Rato", espetáculo em cartaz na Casa Tão Brasil que propõe um exercício radical de escuta e presença. Não se trata de uma representação sobre pessoas em situação de rua, mas de um encontro mediado pelo teatro, onde a ficção cede espaço à urgência do real.

A montagem acompanha a trajetória de um diretor teatral que, ao se deparar com aqueles que habitam os espaços esquecidos da metrópole, vê suas certezas artísticas ruírem. E o que poderia ser simplesmente um espetáculo sobre exclusão social transborda como interrogações éticas: como falar do outro sem transformá-lo em objeto? Como criar arte a partir da dor alheia sem cair na tentação do voyeurismo? Essas questões atravessam toda a dramaturgia, assinada por Ricardo Santos e Caroline Lavigne — dupla que já havia explorado temas sensíveis em "Cuidado Quando For Falar de Mim", trabalho premiado sobre HIV e estigma.

O processo criativo de "O Nome do Rato" se sustenta em extensa pesquisa de campo. Durante meses, a equipe conversou com profissionais da saúde, assistentes sociais e, principalmente, com pessoas que vivem nas ruas - depoimentos que estruturam a própria dramaturgia. O espetáculo articula recursos do teatro documental e do teatro de objetos, criando uma linguagem cênica em que relatos pessoais dos atores Gustavo Barbalho e Ricardo Santos se entrelaçam com as vozes colhidas na cidade. A advogada de direitos humanos Regina Bueno assinou o apoio técnico, garantindo rigor e responsabilidade no tratamento das informações colhidas para a realização do espetáculo.

Sob a direção de Deisi Margarida e Ricardo Santos — este último indicado ao Prêmio Shell em 2019 —, a encenação recusa realismos convencionais. A rua não é reproduzida cenograficamente, mas evocada através de objetos, projeções e, sobretudo, da palavra. Ou seja, em vez de simular a miséria, o espetáculo cria um espaço de reflexão sobre ela.

Os números que contextualizam a montagem são alarmantes. Segundo o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a população em situação de rua no Brasil cresceu 935,31% nos últimos dez anos. Não se trata apenas de crise habitacional, mas de uma política deliberada de abandono. Para aprofundar essa discussão, "O Nome do Rato" evoca o conceito de necropolítica, formulado pelo filósofo camaronês Achille Mbembe que examina como o Estado exerce poder ao decidir quais vidas merecem proteção e quais podem ser descartadas.

Um dos momentos mais potentes do espetáculo acontece no desfecho, com a participação especial de Leo Motta, escritor e palestrante que viveu em situação de rua e que compartilha sua própria trajetória.

Desde sua estreia, "O Nome do Rato" vem construindo uma trajetória marcada por escolhas significativas. A primeira temporada aconteceu no Teatro Lea Garcia, no Centro Cultural dos Correios, onde pela primeira vez pessoas em situação de rua foram convidadas como público. Não como objetos de caridade, mas como espectadores de uma obra que também lhes diz respeito. Depois, o espetáculo passou pelo Teatro da Sede Cia dos Atores e agora cumpre sua terceira temporada na Casa Tao Brasil.

A direção musical de Rodrigo Marçal cria uma atmosfera sonora que oscila entre o intimismo e o sentimento de urgência. E a direção de movimento, assinada por Deisi Margarida, explora a relação dos corpos com o espaço urbano — como se movimentam, como ocupam (ou são impedidos de ocupar) determinados lugares. O design e a programação visual, de Igor Gouvêa e Murillo Medeiros, completam a ambientação cênica criada por Maddu Costa e Ricardo Santos, que também assina o figurino. Eugênio Oliveira desenhou a luz, elemento fundamental para construir as atmosferas que transitam entre o documental e o poético.

"O Nome do Rato" não oferece respostas fáceis nem redenções instantâneas. Ao contrário, aposta na desestabilização, no desconforto necessário para que o espectador reveja suas próprias certezas, levando-o a se perguntar o que ele tem a ver com isso?.

Quando nos vemos em meio a uma sociedade que se desumaniza e dissemina ódio e preconceito que naturaliza desigualdades, "O Nome do Rato" nos provoca exigindo uma escuta atenta, o compartilhamento de dúvidas. Ainda que não resolva a questão concreta da população em situação de rua, o espetáculo erige um espaço onde essas vidas invisíveis passem a ser vistas.

SERVIÇO

O NOME DO RATO

Casa Tao Brasil (Rua Joaquim Silva, 77, Centro)

Até 8/12, segunda, às 20h

Ingressos: R$ 40 e R$ 20 (meia)