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Feridas abertas da homofobia

A drAmaturgia de 'Pequeno Monstro' embaralha referências literárias, musicais e jornalísticas para denunciar violências estruturais contra a população LGBTQIAPN | Foto: Tainá Cavalcante/Divulgação

Nesta segunda (10) Silvero Pereira retorna ao Rio com o monólogo "Pequeno Monstro", texto que marca sua volta aos palcos. O espetáculo integra a programação do Festival Todos no TGG - 30 Espetáculos em 30 dias, maratona que celebra os 60 anos do tradicional teatro da Praça Cardeal Arcoverde com uma cuidadosa curadoria que reflete a diversidade da cena teatral brasileira.

A trajetória da peça começou há sete anos, quando Silvero identificou semelhanças entre histórias de crianças LGBTQIAPN e episódios vividos em sua própria infância. Após longa pesquisa, ele retornou à sala de ensaio — depois de 12 anos da criação de seu último trabalho para o teatro — para iniciar o processo de criação em parceria com a diretora Andreia Pires, colega de faculdade nos anos 2000 em Fortaleza. O resultado é uma montagem que embaralha referências literárias e musicais com matérias jornalísticas e memórias pessoais, transitando entre recordações da infância no interior do Ceará e uma juventude turbulenta.

Em cena, o ator constrói narrativa que busca compreender sua jornada pessoal através de conversas com integrantes de sua família e de outras histórias ouvidas ao longo da pesquisa. A estrutura dramatúrgica revela-se como um mosaico em que vivências relacionadas à sexualidade e gênero ganham dimensão maior através da ironia e da denúncia de práticas normalizadas socialmente.

Machismo estrutural e homofobia aparecem na montagem como temas abstratos, mas como violências concretas que traumatizam e condenam destinos. "Uso minha história como ponta de um iceberg, e me coloco como escudo para outras histórias aqui relatadas", explica Silvero. "Essa fragmentação de histórias pessoais, ficcionais e de terceiros serve justamente para enfatizar que não se trata de exceção, de classe ou de um lugar, é um problema social grave e que precisa de ações efetivas."

O espetáculo inclui números musicais, entre os quais a canção "Fera Ferida", de Roberto e Erasmo Carlos, numa ponte entre a narrativa dramatúrgica e experiências emocionais mais diretas. Sua escolha oferece ritmo ao texto, pausa narrativa que permite ao público processar emoções e reflexões suscitadas pelos depoimentos e histórias encenadas.

"Pequeno Monstro" marca retorno de Silvero ao teatro desde a estreia de "BR Trans", em 2012. Nos 12 anos que se seguiram, o ator foi catapultado para o sucesso em projetos audiovisuais que incluem participações em novelas de grande alcance como "A Força do Querer" (2015) e "Pantanal" (2022); nos filme "Bacurau" (2019), de Kleber Mendonça Filho, e "O Maníaco do Parque" (2024), de Mauício Eça; e em programas como o The Masked Singer Brasil, que venceu recentemente. Ainda em 2024, apresentou show musical dedicado à obra de Belchior.

"Voltei ao teatro um tanto preocupado se ainda me sentia um ator de teatro. Sou formado em artes cênicas e com 25 anos de carreira dedicados aos palcos, mas por conta da demanda audiovisual me senti um tanto enferrujado e com a certeza de que nenhum ofício se vale pelo talento, mas sim pelo estudo e dedicação. Foi necessário recusar novos trabalhos no audiovisual para uma dedicação quase que totalmente exclusiva a 'Pequeno Monstro', refazer treinos de corpo, voz e imaginação para construir um processo criativo que muito exigia de mim como ator, autor e artista", disse o ator na ocasião da estreia de "Pequeno Monstro".

A directora Andreia Pires enfatiza a qualidade desse retorno. "No processo de criação, foi bonito ver o corpo do Silvero na sala de ensaio porque ele é um ator que potencializa tudo que já está ali no corpo dele. Ele já tinha uma dramaturgia erguida, organizada ali num texto escrito, mas isso foi se moldando e se modificando. Eu estou ali com o Silvero no trabalho dele. É como se eu estivesse entrando numa casa que não é minha, mas eu fui entrando e fui me sentindo em casa", destaca a encenadora.

Recordes trágicos

O Brasil acumula recordes trágicos de assassinatos de pessoas LGBTQIAPN , uma trágica estatística que reflete estrutura social historicamente marcada pela violência. "Estamos mais violentos, mas isso não se localiza somente neste tempo do agora, é mais profundo, se trata de um país historicamente violento desde sempre e que precisa de atenção, denúncia e busca por soluções", observa Silvero.

O espetáculo assume posicionamento sem cair em didatismo. O ator diferencia claramente entre obra artística e manifesto político. "Estamos fazendo uma peça de teatro, uma obra artística, não necessariamente um manifesto. Nossa função, como artistas, é trazer o tema com seriedade e a responsabilidade que ele exige, mas também atentar ao potencial estético e narrativo que servirão como alegorias para que a aproximação com o público ocorra dentro da liturgia do teatro", afirma. Essa distinção é fundamental para compreender como "Pequeno Monstro" consegue ser simultaneamente politicamente empenhado e esteticamente refinado.

SERVIÇO

PEQUENO MONSTRO

Teatro Gláucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/nº - Copacabana)

10/11, às 20h

Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)