Montagem sobre atores enclausurados durante massacre histórico questiona a função da arte em tempos de violência
Dando sequência ao Festival Todos no TGG - 30 Espetáculos em 30 dias, o Teatro Gláucio Gill recebe nesta quinta-feira (4), às 20h, apresentação única de "Neva", montagem da Armazém Companhia de Teatro que investiga a função da arte em contextos de colapso social e político. O espetáculo propõe uma reflexão urgente sobre o papel do teatro diante da violência e da tragédia coletiva. A montagem, dirigida por Paulo de Moraes, foi indicada ao Prêmio Shell Rio de Janeiro 2023 nas categorias de melhor direção e melhor iluminação, assinada por Maneco Quinderé.
Escrita em 2005 pelo dramaturgo e diretor chileno Guillermo Calderón, "Neva" se passa em São Petersburgo, então capital do Império Russo, em 9 de janeiro de 1905, data que ficou conhecida como Domingo Sangrento. Naquele dia, manifestantes que marchavam para entregar uma petição ao Czar, pedindo melhores condições de trabalho nas fábricas, foram fuzilados pela Guarda Imperial. A ação do espetáculo, no entanto, se passa dentro de um teatro, onde um ator e duas atrizes que iriam se encontrar para ensaiar "O Jardim das Cerejeiras", de Anton Tchekhov, acabam se abrigando do massacre que acontece nas ruas.
Uma das atrizes trancadas dentro do teatro é a alemã Olga Knipper, interpretada por Patrícia Selonk, primeira atriz do famoso Teatro de Arte de Moscou e viúva do dramaturgo russo Anton Tchekhov. Sentindo-se incapaz de representar depois da morte do marido por tuberculose, acontecida há seis meses, e na tentativa de seguir vivendo enquanto lá fora a cidade desaba, Olga instiga Masha, vivida por Isabel Pacheco, e Aleko, interpretado por Felipe Bustamante, a encenarem repetidamente com ela a morte de Tchekhov.
A partir desse desassossego, entre incertezas artísticas e embates políticos, a pergunta que mais se impõe é "para que serve o teatro?". Com um humor feroz, Calderón escreve sobre uma Rússia conflagrada politicamente no início do século 20, mas reflete sobre o seu Chile da década de 1970, marcado pela ditadura de Pinochet, e talvez sobre o Brasil de anos recentes, tempos em que "tudo o que tem água está congelado, inclusive os homens", como diz uma das personagens.
A discussão feita pelos personagens oscila entre a afirmação da absoluta necessidade da arte — "temos que fazer teatro. Temos que fazer uma peça que nos cure a alma" — e da sua total irrelevância — "pra que perder tempo fazendo isso? O teatro é uma merda. Querem fazer algo que seja de verdade: saiam às ruas". Essa tensão atravessa toda a montagem, sem oferecer respostas fáceis ao dilema.
"Calderón propõe um tipo de teatro que me encanta porque é um teatro eminentemente político, mas que se propõe a mergulhar em uma linguagem poética cortante e num humor extremamente ácido. A partir de acontecimentos surpreendentes, no meio de muitas tosses e promessas vagas de amor, ele levanta perguntas muito provocativas. Perguntar bem, perguntar mais e melhor, esse é o teatro que me interessa", destaca o diretor Paulo de Moraes.
Desde sua estreia em abril de 2023, o espetáculo tem circulado pelo país com reconhecimento de público e crítica. Sua última temporada em palcos cariocas se deu em merço 2024 na Fundição Progresso. A crítica especializada destacou a relevância política da peça e a profundidade do texto de Calderón, que estabelece paralelos entre diferentes contextos históricos de repressão e resistência.
O Domingo Sangrento de 1905 foi um dos eventos que precipitaram a Revolução Russa de 1917, marcando o início do fim do Império dos Romanov. O massacre de manifestantes desarmados que apenas pediam melhores condições de vida expôs a brutalidade do regime czarista e radicalizou setores da sociedade russa.
Ao escrever a peça, Calderón olhava para a Rússia de 1905, mas também para o Chile de Pinochet, país onde nasceu e cujas feridas históricas marcam profundamente sua obra. A ditadura chilena (1973-1990) deixou milhares de mortos e desaparecidos, e o trauma desse período continua reverberando na sociedade chilena. A montagem do Armazém Companhia estabelece novos paralelos com o contexto brasileiro recente, marcado por ataques à democracia e à cultura.
SERVIÇO
NEVA
Teatro Gláucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/n° - Copacabana)
6/11, às 20h
Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)