Por: Cláudio Handrey - Especial para o Correio da Manhã

CRÍTICA / TEATRO / TARDE: Anseios paradoxais

Celso (Carlos Marinho) é um imigrante venezuelano que faz entregas em Niterói | Foto: Divulgação

Num encontro dilacerado, o entregador Celso e o doutor Joel estabelecem um embate entristecido, expondo suas aflições. De classes sociais distintas, as personagens mergulham em suas dores insondáveis, pelas quais somos fisgados até o fim do espetáculo. O texto de João Cícero Bezerra, artesão de ideias instigantes, denota extrema sensibilidade e refinamento, em detrimento de narrativas levianas, que por muitas vezes assolam os nossos palcos. A peça aborda temas como xenofobia, dependência química, solidão, luta de classes, instabilidade financeira, na cidade de Niterói, em que localidades verdadeiras são citadas, apesar da ficcionalidade da obra. Numa relação entre um migrante venezuelano e um médico brasileiro, o dramaturgo desvela discussões geopolíticas, culminando em desigualdades, que atormentam os espíritos. O escritor investiga o sistema público de saúde e condições trabalhistas, que transformam seres humanos em ratos.

A direção, do próprio autor, costura a cena com delicadeza, utilizando com bom senso o pequeno espaço que tem nas mãos, além de afinar bem os instrumentos que seus ótimos atores possuem.

Na busca incessante e desumana de ganhar a vida, Celso atravessa a cidade se martirizando para obter verba a fim de zelar por seu filho, que possui uma enfermidade. E Carlos Marinho carrega todas as matizes dramáticas, das quais sua personagem necessita. Com ótima colocação vocal e uma dicção brilhante - poucas vezes vista no teatro por jovens atores - o ator compõe seu estrangeiro sem maneirismos, articulando um portunhol convincente e uma concentração fora do comum. Viciado, o Joel de Jaderson Fialho evidencia suas fraquezas e o ator revela paradoxalidade com sabedoria, sobretudo nos momentos de embriaguez. Os intérpretes se mobilizam de forma impecável para nos presentear a história contundente e violenta, que lhes foi confiada.

Um piso branco atenua os climas instaurados e favorece a luz precisa de Thaisa Santoth. O cenógrafo João Dalla Rosa, acomoda ainda uma bicicleta, que facilita a condução da narrativa, além de apostar na simplicidade de um figurino adequado. A trilha de Marcio Pizzi reverbera elegância, ao ecoar Piazzola, e como a cereja do bolo, Frank Sinatra para finalizar, numa primorosa coesão de contexto.

Tarde, no Brasil e Espanha, é substantivo e advérbio. E nessa metáfora, o espetáculo reforça seu status poético, na ideia de que algo já se deu com atraso, que a vida vai passar e devemos correr para não perdermos o fio da meada. Antes tarde do que nunca, é preciso compartilhar da beleza que se expressa na montagem de "Tarde"!

SERVIÇO

TARDE

Espaço ABU (Av. N. S. Copacabana, 249, Loja E) | Até 2/11, de sexta a domingo (20h) | R$ 60 e R$ 30 (meia)