Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

No auge da consagração mundial de 'O Agente Secreto', Wagner Moura leva uma versão de clássico de Henrik Ibsen aos palcos

Wagner Moura na montagem de 'Julgmanto', que marca seu retorno aos palcos após 16 anos | Foto: Caio Lírio/Divulgação

Ator retorna aos palcos após 16 anos afastado de montagens teatrais e assina dramaturgia inspirada em clássico do autor norueguês

Sete horas em ponto desta noite, Wagner Moura estará no palco do Teatro II do CCBB-RJ, batendo cabeça para o norueguês Henrik Ibsen (1828-1906), numa revisão livre de seu legado dramático, batizada de "Um Julgamento". A dramaturgia é assinada pelo astro de "Narcos" ao lado da encenadora Christiane Jatahy e do roteirista Lucas Paraizo.

Muitas pautas políticas que esse baiano egresso da cidade de Rodelas depura no cinema e no streaming estarão a seu lado em cena. Dias antes de ganhar o prêmio de Melhor Ator no 78º Festival de Cannes, por seu desempenho em "O Agente Secreto", Wagner falou ao Correio da Manhã sobre a essência democrática por trás do uso da palavra "povo" na arte, uma palavra essencial ao pensamento ibseniano. "A partir do pós-guerra, a representação realista da classe trabalhadora ganhou contornos anticapitalistas, do neorrealismo italiano a Mike Leigh, associada ao fato de que instituições públicas que deveriam ser um espaço de saber acessíveis a todos são atacadas por pensarem a condição dos pobres, sobretudo nos governos de ultradireita", explicou o astro na ocasião. Essas ideias se afinam um bocado com as de seu personagem, o médico e cientista Thomas Stockmann, na peça que marca o retorno do ator aos palcos após 16 anos.

Montagem não é uma adaptação, mas um novo texto que recontextualizaa obra de Ibsen

Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo | Foto: Caio Lírio/Divulgação

Esse projeto vem de uma sinergia de dois anos entre a estrela de "Tropa de Elite" (Urso de Ouro de 2008) e Christiane Jatahy, diretora de sucessos como "Corte Seco" (2009) e "A Falta Que Nos Move" (2009). Em busca de um projeto em que afinassem as visões sobre o real - e sobre as representações dele -, os dois chegaram a "Um Inimigo do Povo", que Henrik Ibsen encenou pela primeira vez em 1882.

A peça original narra os contratempos do Dr. Thomas Stockmann após a descoberta de que as águas do balneário termal de sua cidade estão contaminadas. Ao tentar alertar as autoridades para proteger a população e os turistas, ele vê suas intenções fracassarem e acaba condenado como um detrator público, acusado de querer prejudicar economicamente a cidade e de ignorar a vontade da maioria.

O que o Centro Cultural Banco Brasil acolhe agora nasce dessa premissa, mas com vida própria. "Não é uma adaptação da peça, é realmente um novo texto, em que as questões que são tratadas no original do Ibsen, e os seus personagens, são trazidos para o Agora, e o Thomas Stockmann de antes pede uma possibilidade de fala e de defesa, para sua ética e para as suas ideias, por meio da sua denúncia", explica Jatahy, que, no trabalho com Wagner e Paraizo (autor das séries "Os Outros" e "Sob Pressão"), assumiu o nome "Um Julgamento - Depois do Inimigo do Povo" como seu título oficial.

Centelhas do pensamento de Ibsen ficaram em "Um Julgamento", sobretudo pela pertinência, pela permanência e pela atualidade das reflexões do dramaturgo escandinavo, ao tratar de fake news, avanços da ciência, ecologia e até do cancelamento — levantando o dilema entre o imperativo moral e o capitalismo. Jatahy propôs criar um texto original que começasse alguns anos depois de onde a narrativa de Ibsen termina, abordando, portanto, o momento no qual Thomas Stockmann seria julgado, para que se decida se ele é ou não "Um Inimigo do Povo". O resultado dessa pesquisa narrativa nasceu no início do mês no CCBB de Salvador, onde ficou de 3 a 12 de outubro. No Rio, a temporada segue até 3 de novembro, com gente se estapeando por ingressos. Já houve polêmica pelo fato de as entradas esgotarem num piscar de olhos.

"Nossa peça faz fronteira com as questões não só do Brasil, mas do mundo todo dos dias de hoje, ao mostrar que a verdade deixou de se ater sobre fatos", diz Jatahy. "O personagem do Thomas tenta falar a verdade. Mas ele vai sendo manipulado a um ponto que sua verdade vai sendo negada, nesse mundo em que só existem versões. Um mundo em que a gente já não consegue mais pensar sobre os fatos. Isso, inclusive, bate na importância do jornalismo hoje como portador da factualidade, porque a verdade acabou - como se ouve no início da primeira frase que o Wagner fala na peça".

No ano de 2025, o protagonista de Ibsen busca por reparação. Stockmann quer recuperar sua dignidade e, diante de um júri formado pelo público, submete-se a um novo veredito. Ao lado de sua filha Petra Stockmann (vivida por Julia Bernat, parceira recorrente de Jatahy), ele pede uma retratação pública e uma nova chance de se defender. O espetáculo tem como acusação o irmão do protagonista, Peter Stockmann, vivido por Danilo Grangheia. Ex-prefeito da cidade, ele é o representante das autoridades locais. O que se inicia como corte, transforma-se em uma disputa familiar, revelando os conflitos por trás da rivalidade entre os irmãos.

"A gente lida com a importância da defesa do meio ambiente, das questões sanitárias, mesmo que isso tenha custos econômicos, que tenham que ser geridos e absorvidos pelo Estado. Essa discussão é um debate central também da peça do Ibsen. Uma coisa de que também tratamos é a forma como o fascismo vai se apropriando das questões da democracia, para chegar ao poder... ou para permanecer nele", diz Jatahy.

"Thomas Stoker simboliza alguém do Brasil de hoje quando a gente não abre mão de defender a ética, de defender as nossas posições. Acho que é muito bonito como o Wagner traz isso, como cola nisso mesmo. Wagner defende as suas ideias e a sua posição de uma forma muito coerente e íntegra, e sinto que o Thomas Stockmann, de alguma maneira, também traz isso na sua essência como personagem. Neste momento, em que tudo são aparências, as pessoas muitas vezes não se colocam na defesa de questões que são pelo bem coletivo. Mesmo com toda a sua explosão, Stockmann é uma figura importante na representação de alguém que defende as suas ideias a todo custo", explica Jatahy.

Ela explica que a base da montagem - com cenografia e iluminação de Thomas Walgrave e figurinos de Marina Franco - é um tribunal funcional, um tribunal que não tem advogados nem juízes.

"Os próprios personagens defendem as suas ideias. O audiovisual... o cinema... entra de uma forma muito dramatúrgica, como sempre nos meus trabalhos. Nesse caso, ele é ainda muito mais preciso na sua presença, porque ele vem como se fossem as provas do caso", explica a encenadora.