Um encontro inesperado nas ruas de Niterói é ponto de partida de João Cícero Bezerra para mergulhar nas feridas abertas do país com o espetáculo "Tarde", em cartaz no Espaço ABU. A dramaturgia junta dois dois personagens que simbolizam as contradições de uma sociedade em crise: Celso, um migrante venezuelano que sobrevive pedalando longas horas fazendo entregas; e Joel, médico brasileiro em colapso emocional, marcado pela depressão e dependência química.
Entre setembro de 2024 e abril de 2025, o próprio autor realizou 120 viagens como motorista de Uber Flash, registrando os ritmos e a realidade niteroiense. Essa imersão no cotidiano urbano, somada ao contato direto com imigrantes que vivem no Morro do Estado, dá à dramaturgia uma autenticidade documental. "As ruas, instituições públicas e clínicas do SUS são citadas com seus nomes reais, compondo uma cartografia dramatúrgica inédita", explica o dramaturgo.
O encontro entre os dois protagonistas, interpretados por Carlos Marinho e Jaderson Fialho, funciona como um microcosmo das tensões que atravessam o Brasil. A relação entre o migrante e o brasileiro projeta questões geopolíticas amplas, onde deslocamentos forçados, fronteiras e desigualdades se manifestam na vida cotidiana com violência, mas também com resistência. A cidade retratada surge dividida entre bairros de classe média alta e morros empobrecidos, espelhando um país onde o trabalho precarizado dos aplicativos e entregas entra em choque com um sistema de saúde pública em colapso.
Ao explorar o rebaixamento de carreiras, o dramaturgo trabalha com referências teóricas, como a obra do sociólogo Richard Sennett, autor de "A Corrosão do Caráter". O texto explora a ascensão do capitalismo flexível, que corrói valores éticos fundamentais, trazendo à cena o paradoxo entre vício e virtude na relação entre os personagens. Questões como xenofobia, dependência química, luta de classes e precarização do trabalho emergem a partir de vivências concretas observadas na cidade.
"Tarde" experimenta fluxos de pensamento e trilinguismo, promovendo o que o autor define como "dialogismo monológico" que desestabiliza fronteiras formais tradicionais. A peça é marcada por diálogos intensos, monólogos interiores e polifonia de vozes para trazer à tona questões como migração, desigualdade, doença, solidão e dignidade humana.
Com direção do próprio autor, a montagem tem cenário e figurino assinados por João Dalla Rosa. A iluminação fica por conta de Thaisa Santoth, enquanto a trilha sonora é criada por Márcio Pizzi. Cilene Guedes assina a assistência de direção e Larissa Benassi a assistência de produção.
"'Tarde' convida o público a refletir sobre vidas que se cruzam e se desfazem nas ruas, nos hospitais e nas tardes da cidade", resume Bezerra.
SERVIÇO
TARDE
Espaço ABU (Av. Nossa Senhora de Copacabana, 249, Loja E). | Até 2/11, de sexta a domingo (20h)
Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia)