Por: Rodrigo Fonseca - Especial para o Correio da Manhã

Conectado na 'live' do (des)controle

Duas grifes de excelência nas telas, Juliano Cazarré e Fernando Ceylão se unem em 'Compliance', uma ácida crítica ao universo dos coachs e influenciadores digitais | Foto: Pamela Miranda/Divulgação

Cronista das incongruências da vida, Fernando Ceylão une seu humor a Juliano Cazarré para devassar as estratégias de (in)segurança do mundo corporativo em 'Compliance'

Quem age com truculência nas relações profissionais terá calafrios diante do título da peça que o multiartista Fernando Ceylão estreia neste fim de semana, no Teatro I Love Prio, no Jockey Club, com uma força da natureza chamada Juliano Cazarré no papel principal: "Compliance". O termo é motivo de bênção para muita gente. Louva-o sobretudo quem se sente oprimido por patrões de paciência rarefeita ou por colegas de modos não civilizados. Há, entretanto, um abismo semiótico de controle por trás desse signo que se tornou uma boia nos novos tempos.

"Do início ao fim da peça, é a opressão corporativa que conduz o personagem do Juliano, Fabrício. Ele está sempre motivado por ela. primeiro na busca desesperada por um emprego; depois na ânsia de atender às expectativas do chefe ou na competição com outros funcionários", explica Ceylão, um dramaturgo, roteirista de TV, encenador, ator, músico e, agora, cineasta, com dois longas ("Cartas Para Deus" e "Resta Um") filmados, no forno. "A peça é conduzida por uma live. O papo do personagem com sua audiência de internet é o fio condutor narrativo. Ele busca ser um desses coachs oportunistas que, cá pra nós, tentam ganhar dinheiro ensinando o público a fazer o que eles nunca conseguiram".

Dez anos atrás, Cazarré entregou às artes deste país um desempenho devastador à frente de "Boi Neon", longa-metragem que foi laureado com o Prêmio do Júri da mostra Horizonte de Veneza e com o troféu Redentor de Melhor Filme de 2025. Espera-se uma atuação nesse naipe (a se julgar por tudo o que ele vem entregando nas telas) de seu trabalho em "Compliance", que faz sua estreia nesta sexta-feira (10) no palco do Teatro I Love Prio.

Fabrício é um executivo de terno e colete bem ajustado. Tem o sorriso treinado e chega munido de frases prontas. Sua atitude é quase violenta, amenizada por um sorriso ora carismático ora doentio. Cheio de falas motivacionais, ele tem atraído milhares de seguidores e todos os dias entra ao vivo no Instagram para motivar a audiência com lemas como: "Executa e vai. Mente milionária!". É um amálgama de autoajuda, empreendedorismo e promessas de ascensão pessoal. A live que se vê na narrativa da peça segue um tom diferente das que ele se habituou a fazer. Hoje, Fabrício está fora de si.

"A grande força do trabalho do Ceylão está no equilíbrio entre arte genuína e universo pop. Ele consegue fazer teatro de verdade, mas que se comunica com o público", diz Cazarré. "Durante muito tempo, o teatro pareceu se afastar dessa ideia de contar histórias. Entrou num período de introspeção, de pesquisa de linguagem — o que é importante —, mas, por vezes, esquece-se de dialogar com as pessoas. O Ceylão faz o contrário: ele conta uma história de modo divertido, acessível, mas sem abrir mão da profundidade".

Demasiadamente humano como é padrão dos personagens Ceylão, numa fauna consagrada nos textos teatrais "Como é Cruel Viver Assim" e "Meu nome é Reginaldson", o Fabrício de "Compliance" revela, em cena, a tragédia que virou sua vida do avesso. Conta como, após seis meses desempregado, foi contratado por uma empresa onde, de forma estranha, seu chefe, Bruno Batista, parecia tê-lo como protegido. O preferido. Era o único tratado com deferência num ambiente hostil. Ganhava confiança, tapinhas nas costas, privilégios. Mas as coisas começaram a ficar estranhas. Bruno ligava no meio da madrugada para desabafar, obrigava Fabrício e sua família - Laura e dois filhos - a viajarem com ele. Tratava-o como um assistente pessoal sem horários livres. Do nada, tudo virou. O mesmo chefe passou a persegui-lo: minava sua imagem, fazia piadas públicas, arranhava sua dignidade com requinte. O bullying era silencioso, mas devastador. Na festa de uma amiga dos tempos de escola, Fabrício, finalmente, conecta os pontos: Bruno Batista também foi se colega na mesma escola. Fabrício, porém, não se lembrava dele. Tampouco se lembrava de ter caçoado dele em seus tempos de colégio, quando na altura, o sujeito era conhecido como Bruno Batata.

"Essa tentativa de fazer das redes sociais um eterno currículo também é motivada, de certa forma, pelo mundo corporativo, mas a peça não fala só sobre esse universo", explica Ceylão. "A trama trafega muito por aí, mas os temas caminham por outras áreas universais e mais humanas, digamos, como vingança, ódio, bullying; como uma pessoa, sem querer, poder destruir a vida de outra... Mesmo quando falamos de corporações, no fim das contas, sobretudo, no teatro, estamos falando dos lados virtuosos e sombrios do ser humano".

De alguma maneira, "Compliance" é um espetáculo político... não na natureza crítica essencial do teatro, mas numa abordagem mais explícita de crônica da realidade empresarial. "Eu não pensei politicamente enquanto escrevia. Eu nunca penso, aliás", diz Ceylão, que assina o texto, a direção, a cenografia e a trilha sonora do espetáculo. "Eu parto sempre de uma história que quero contar e só depois eu vou entender quais são os temas por trás dela. Acho que quando você coloca a temática ou visão política a frente da trama, é melhor, então, partir pra fazer camisetas ou panfletos e não dramaturgia".

SERVIÇO

COMPLIANCE

Teatro I Love Prio, (Jockey Club Brasileiro - Av. Bartolomeu Mitre, 1110B - Leblon)

Até 2/11, às sextas e sábados (20h) e domingos (19h)

Ingressos: R$ 120 e R$ 60 (meia)