Três desconhecidos se encontram no telhado de um prédio de 20 andares e, a partir desse encontro aparentemente casual, desencadeiam reflexões profundas sobre os transtornos mentais que marcam o século. É essa a premissa de "Limítrofe", em cartaz no Teatro Dulcina. Com texto inédito de Oscar Calixto e direção de Daniel Dias da Silva e Anderson Cunha, a montagem utiliza o formato de "dramédia" para abordar questões como ansiedade, depressão e o fenômeno dos humores instáveis que caracterizam a sociedade contemporânea.
A trama apresenta Cláudia, uma mulher que parece ter saído de um ensaio de dança; Paschoal, um ator de televisão que irrompe no espaço de forma abrupta; e Marcos, um escritor que surge inesperadamente no local. O encontro entre os três personagens, interpretados por Malu Falangola, Raphael Najan e o próprio Oscar Calixto, gera uma série de trocas de farpas, análises, diagnósticos precipitados e discussões filosófico-existenciais temperadas com humor e ironia.
A dramaturgia foi desenvolvida com consultoria de psicólogos, psicanalistas e psiquiatras, tendo como referências teóricas pensadores como Sigmund Freud, Carl Jung, Jacques Lacan e Zygmunt Bauman. "O desejo de levar esse tema ao teatro nasce da pura observação de uma sociedade que vem transformando absurdos em coisas normais. Sociedade que vem adoecendo e impulsionando os índices dos casos de suicídio no mundo inteiro", explica Oscar Calixto.
O autor destaca que a peça também discute transformações no mercado de trabalho e como as redes sociais estão sendo normalizadas e passam a agir no inconsciente coletivo. Segundo dados da International Stress Management Association (ISMA), o Brasil lidera o ranking mundial de pessoas ansiosas, com altos índices de estresse entre trabalhadores e significativa incidência do Transtorno de Personalidade Limítrofe ou Borderline.
A montagem surge como uma proposta artística e social para promover conscientização sobre transtornos mentais e suas variações de gravidade. Por meio da combinação entre humor, drama, poesia e sensibilidade, o espetáculo convida o público a refletir sobre julgamentos apressados, rótulos e a maneira como lidamos com o sofrimento alheio. "Fazemos isso de modo muito simples: nós apenas contamos uma história. E acreditamos que o ato de colocar o tema em cena já seja um modo de ajudar o público a pensar sobre o assunto", pondera Oscar sobre a abordagem escolhida.
O dramaturgo faz referência à série "Desperate Housewives" como exemplo de como o formato "dramédia" pode ser eficaz para discutir temas sensíveis como o suicídio, permitindo que drama e comédia coexistam, muitas vezes na mesma cena. A proposta de "Limítrofe" é abordar questões complexas de maneira leve e alinhada com a causa, proporcionando ao público momentos de riso, diversão e emoção através de uma narrativa onde o imprevisível é o elemento central.
Durante a temporada de estreia, profissionais da saúde mental serão convidados para promover debates com o público uma vez por semana, com datas a serem anunciadas previamente no Instagram @espetaculolimitrofe. Para Oscar Calixto, um dos grandes problemas contemporâneos está na absorção e normalização do modus operandi das redes sociais em nossas vidas. O autor defende a necessidade de criar "pequenos espaços de contemplação da vida" como forma de resistência.
"Num mundo cheio de telas e de milhares de informações por dia, é importante saber dosar com equilíbrio o uso da tecnologia, filtrar um pouco as informações e abrir esses espaços de contemplação", argumenta Oscar. Ele alerta que estamos praticando a mesma violência presente nos comentários agressivos das redes sociais e nos tornando seres "normóticos", termo cunhado pelo educador francês Pierre Weil. A "normose", conceito desenvolvido por Pierre Weil, Jean-Yves Leloup e Roberto Crema, descreve hábitos e atitudes consideradas normais pela sociedade, mas que são prejudiciais e causam sofrimento.
Embora reconheça a dificuldade de frear essa estrutura que consumimos diariamente, Oscar acredita ser possível trazer consciência sobre a importância do autocuidado. "A saída não é única, mas múltipla. Filosoficamente, resgatar o tempo da contemplação e do encontro genuíno. Psicologicamente, cultivar sentido, presença e vínculos empáticos. Psiquiatricamente, alinhar recursos clínicos com práticas de autocuidado e políticas públicas de suporte", conclui o dramaturgo. Para ele, não se trata de escapar da realidade acelerada, mas de instaurar pequenas zonas de resistência, silêncio, escuta e cuidado mútuo que permitam viver como sujeitos e não como engrenagens de uma máquina apressada.
SERVIÇO
LIMÍTROFE
Teatro Dulcina (Rua Alcindo Guanabara, 17 - Cinelândia)
Até 26/10, de quinta a sábado (19h) e domingos (18h)
Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia)