A qualidade dramatúrgica sempre serviu de sustentação para admiráveis montagens. O texto de Leonardo Netto propicia a "O Motociclista no Globo da Morte" uma dramaticidade pungente, na qual toda a equipe conquista possibilidades infindáveis de técnica e emoção. O autor presenteia aos espectadores uma das melhores escritas cênicas neste ano na cena carioca.
Tudo é narrado por Antônio, homem correto, pacífico, que se dirige ao público para apresentar sua história trágica, ao abordar a violência sofrida num dia comum, algo que poderia ocorrer com qualquer um de nós. A espetacularização e banalização dos atos violentos são situados com tamanha engenhosidade, haja vista a quantidade de selvageria, pela qual nos encontramos chafurdados por uma sociedade polarizada e adoecida, em que uma faísca pode converter-se em explosão. Netto expõe a admiração e a devoção que uma camada humana (?) se presta a divulgar ações despropositadas de assassinos e psicopatas, como forma de entretenimento. A personagem se depara com o seu homônimo, um homem vil, que começa assediar a garçonete, até que friamente retira um canivete do bolso, comete um crime e daí somos fisgados por uma narrativa instigante, que nos deixa perplexos.
Rodrigo Portella elabora um espetáculo minucioso, contrastando positivamente com a dramaturgia, que escancara estados intensos e aterrorizantes. Com extrema sabedoria, o diretor aprisiona o ator/narrador numa única cadeira - com cenário do próprio e de Milla Fernandez, valorizando e detalhando o seu intérprete, além de oferecer à audiência um espaço, para que possamos elucubrar os horrores evidenciados. E permite que, cada um de nós, possa criar imagens daquele acontecimento tenebroso.
Capitaneado por uma direção habilidosa, Eduardo Moscovis se encontra pleno, maduro, num dos seus melhores momentos como ator, construindo uma interpretação repleta de intenções, até alcançar uma detonação de sentimentos, até a exaustão. O ator vai evoluindo na medida certa até desaguar numa emoção poeticamente contida, entorpecendo-nos.
A trilha de André Muato atenua a brutalidade da narrativa. O figurino de Gabriella Marra é simplório, como deve ser. E a luz de Ana Luiza de Simoni, exibe refletores elipsoidais - revelando sua versatilidade, toda branca, seca, reforçando a ideia daquele homem maldito, sem cor, sem emoção. Focos vão sendo paulatinamente oclusos, delineando sombras, na medida que a história avança e nossos corações entristecem, apoiando toda a metáfora de que somos capazes de nos transformar em motociclistas no globo da morte, em face à todas as amarguras que esse mundo desalmado proporciona. Vale correr ao teatro e refletir!