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A dama do improviso

A Pérola Nagra do Samba | Foto: Luiz Antônio Pilar/Divulgação

Avoz grave de Jovelina Pérola Negra ecoa nos palcos cariocas com o musical "A Pérola Negra do Samba", em cartaz no Teatro Carlos Gomes. A montagem, assinada pelo jornalista e escritor Leonardo Bruno e dirigida por Luiz Antonio Pilar, resgata a memória de uma das figuras mais emblemáticas do samba de partido-alto, um símbolo da força da mulher negra na música brasileira.

Jovelina Pérola Negra construiu uma carreira singular no universo predominantemente masculino do pagode carioca. Nascida em 1944, a cantora e compositora destacou-se por sua capacidade de improvisação e malandragem nas rodas de samba, características tradicionalmente associadas aos homens do gênero. Sua obra retratava com humor e perspicácia o cotidiano do subúrbio carioca, transformando em música as experiências do povo da periferia. O reconhecimento, porém, chegou tardiamente: apenas aos 41 anos, em 1985, quando participou do disco "Raça Brasileira", álbum que também revelou Zeca Pagodinho e se tornou marco do pagode nacional.

O espetáculo recorre a mais de vinte canções da artista para construir sua dramaturgia, tendo como fio condutor a personagem Dona Cebola, da música "Feirinha da Pavuna". A canção inspira tanto o cenário quanto o figurino da montagem, que reproduz o ambiente colorido das feiras livres suburbanas, com caixotes e placas em letras de filete. Sucessos como "Bagaço da Laranja", "Sorriso Aberto" e "Luz do Repente" dividem espaço com composições menos conhecidas, oferecendo um panorama abrangente da produção musical de Jovelina.

A atriz, cantora e compositora Afro Flor assume o desafio de interpretar a protagonista, acompanhada por Thalita Floriano, Fernanda Sabot e Thiago Thomé, que dão vida a figuras marcantes da trajetória da sambista, incluindo familiares e personalidades como Clementina de Jesus, uma das principais influências artísticas de Jovelina. O elenco conta ainda com seis músicos: Matheus Camará no violão e Rodrigo Pirikito no cavaquinho, dupla responsável pela direção musical, além de Daniel Esperança no teclado, Wesley Lucas na bateria, Pedro Ivo e Thainara Castro nas percussões.

Leonardo Bruno, que já havia colaborado com Luiz Antonio Pilar no premiado "Leci Brandão - Na Palma da Mão", vencedor do Prêmio Shell de Direção, encontra em Jovelina um personagem que dialoga com suas pesquisas sobre o universo do samba. "Jovelina construiu sua carreira cantando músicas que falavam do dia a dia do subúrbio: o trem lotado, a confusão na esquina, o malandro da Zona Norte, a patricinha da Zona Sul, a negritude orgulhosa, a fé numa força maior. Foi uma carreira curta, mas muito intensa, com diversos sucessos, marcados por sua figura emblemática", explica o dramaturgo, que também atua como comentarista de carnaval e integra o júri do Estandarte de Ouro.

Jovelina transitava com naturalidade pelos códigos masculinos do partido-alto. "Ela se diferencia dos demais nomes femininos do universo do samba por ser uma cantora de partido-alto, do improviso, da malandragem, características normalmente associadas ao masculino", observa Bruno. "Ela era essa mulher bem-humorada, que consegue bater de frente com os homens, enfrentando na rima, com picardia, falando de igual para igual na roda de samba", completa o autor.

O diretor Luiz Antonio Pilar destaca que a montagem aborda questões sociais mais amplas. "O espetáculo apresenta um grande panorama da vida da artista, preservando sua memória. Jovelina foi uma entre tantas brasileiras que, em meio à busca pela sobrevivência, tinha um sonho de se tornar cantora. Enfrentou o racismo, o machismo e diversas adversidades", afirma o diretor, destacando como a trajetória da sambista reflete as lutas do povo preto e periférico.

A carreira de Jovelina, interrompida precocemente por um infarto em 1998, aos 54 anos, deixou um legado que permanece vivo nas rodas de samba da cidade. Integrante da geração que emergiu do Cacique de Ramos ao lado de nomes como Zeca Pagodinho, Arlindo Cruz, Jorge Aragão e Almir Guineto, ela soube conquistar seu espaço e sua obra é um farol para novas gerações de sambistas, especialmente mulheres que encontram em sua trajetória um exemplo de resistência e talento.

SERVIÇO

A PÉROLA NEGRA DO SAMBA

Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, s/nº, Centro)

Atá 9/11, quintas e sextas (19h) | sábados* e domingos (17h)

Ingressos: Plateia - R$ 80 e R$ 40 (meia) | balcão - R$ 50 e R$ 25 (meia)

*Sessões com intérprete de Libras e audiodescrição