A companhia mineira, com 43 anos de trajetória, encontrou na narrativa saramaguiana um terreno fértil para expandir sua pesquisa de linguagem. Eduardo Moreira, ator e fundador do Galpão, destaca que a parceria com Portella representa mais um importante capítulo da trajetória de experimentação e teatro de pesquisa do Grupo. Para ele, o teatro do Galpão está sempre em construção, numa perspectiva que revela limites ao mesmo tempo que convida a "viver novas experiências de risco e experimentação, não só entre nós, mas também na comunhão com o público".
A adaptação propõe uma abordagem inovadora ao conceito de ensaio presente na obra original. Assim como Saramago atravessa fluidamente o limite entre realidade e ficção, os atores do Galpão não se submetem às personagens tradicionais. "As personagens estão a serviço do jogo e das motivações dos atores, do dramaturgo e diretor", explica Portella. Essa escolha cria um fluxo de atuação que espelha a prosa saramaguiana, na qual os limites entre narrativa e diálogo se esfumaçam, questionando constantemente: quem fala agora, o performer ou a personagem?
Um dos mais destacados diretores teatrais brasileiros, com peças apresentadas em diversos países e vencedor de prêmios como Shell, APCA e Prix de la Critique Montréal, enxerga na obra de Saramago uma urgência contemporânea. "O negacionismo climático e científico é uma espécie de cegueira, assim como o automatismo, a adoção do autoritarismo como ideologia, a ausência de debate, todo tipo de fundamentalismo político-religioso", analisa. Para ele, Saramago propõe uma epidemia de cegueira como forma de aprendizado, "para dar-se conta da necessidade de reparar, mudar, ajustar o sistema, retornar ao essencial".
Fernanda Vianna, atriz do grupo, ressalta a intensidade do processo criativo: "A dramaturgia dele é brilhante. Cabe o livro inteiro do Saramago nessa montagem, ou, como disse o próprio escritor, 'o mundo inteiro está aqui dentro'". Para ela, a "cegueira branca" de Saramago retrata a "cegueira moral da indiferença, do egoísmo, da tirania e da covardia, de nossa impotência diante das guerras, dos que têm fome".
A camada sensorial da montagem ganha contornos especiais na trilha sonora assinada pelo premiado violoncelista e compositor italiano Federico Puppi. "Cada ator, cada gesto, carrega uma sonoridade única, como se o grupo inteiro vibrasse em harmonia", destaca o músico.
A temporada introduz uma novidade: o "Ingresso Experiência", que permite ao público vivenciar a peça em uma experiência imersiva e sensorial no palco, guiada pelo elenco. A iniciativa reflete a proposta da montagem de quebrar as barreiras tradicionais entre palco e plateia, convidando o espectador a participar ativamente da reflexão sobre nossa capacidade de enxergar além das aparências.
O Galpão acerta ao escolher um autor como Saramago diante de um conexto atual de desinformação, polarização e perda de senso crítico. "Quando vou a um museu muito turístico, constato uma cegueira geral. Poucas pessoas veem, de fato, as obras. A maioria não as enxerga, pois perdeu a capacidade de ler, observar e reter. Elas estão distraídas com suas selfies 'instagramáveis', perdidas numa espécie de automatismo", exemplifica Portella.
Em tempos de excesso de imagens e escassez de visão, a proposta do grupo mineiro se impõe como um chamado urgente à recuperação de nossa capacidade de enxergar as camadas mais profundas da realidade.
O Galpão complementa a temporada com quatro oficinas gratuitas, voltadas à comunidade teatral.
SERVIÇO
(UM) ENSAIO SOBRE A CEGUEIRA
Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes, s/n° - Centro)
Até 14/9, de quarta a sexta-feira (19h), sábados e domingos (17h)
Sessões com acessibilidade em LIBRAS: 3, 7, 10 e 14/9 (quartas e domingos) | Sessões com audiodescrição: domingos
Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia) | Promocional - R$ 34 e R$ 17 (meia)