A Companhia Polifônica celebra uma década de trajetória com a nova temporada de "Eddy — Violência & Metamorfose" no Teatro Poeira, em Botafogo, até domingo (31). O espetáculo, que conquistou reconhecimento da crítica especializada, apresenta uma proposta original ao reunir três obras do escritor francês Édouard Louis em uma única montagem: "O Fim de Eddy", "História da Violência" e "Mudar: Método". A iniciativa teve o aval entusiasmado do próprio autor.
Fundada por Luiz Felipe Reis e Júlia Lund, a Polifônica encontrou na obra de Louis um material que dialoga diretamente com as transformações da cena artística contemporânea, marcada pela emergência de vozes vindas das periferias e pequenos povoados. O escritor, sociólogo e filósofo francês deixou uma vila operária para estudar na prestigiada École Normale Supérieure, em Paris, transformando sua experiência pessoal em literatura que se tornou fenômeno político e cultural.
O co-diretor Marcelo Grabowsky revela que o processo criativo começou logo após o espetáculo "Amor em Dois Atos". "Fomos profundamente tocados pela escrita de Édouard Louis. Primeiro com 'O Fim de Eddy', depois com 'História da Violência', ainda inédito no Brasil na altura. A ideia foi cruzar os dois livros, depois incluímos um terceiro, que abordam tanto a descoberta da sexualidade em um ambiente opressor quanto um episódio traumático vivido por ele em Paris", explica o diretor.
A montagem reconstitui o episódio central de "História da Violência", ocorrido em dezembro de 2012, quando Édouard, interpretado por João Côrtes, após um jantar com amigos em Paris, encontra Redá, um jovem de origem argelina vivido por Igor Fortunato. O que começa como um encontro casual evolui para uma noite íntima no apartamento do escritor, mas termina em violência extrema quando Édouard é agredido e quase assassinado pelo rapaz na manhã seguinte.
A narrativa teatral se desenvolve um ano após o incidente, quando Édouard retorna à sua cidade natal e se hospeda na casa da irmã Clara, interpretada por Julia Lund. É neste ambiente familiar que se inicia um complexo jogo de relatos e memórias, onde os três atores transitam entre múltiplos personagens que compõem o entorno de Édouard: o agressor, a irmã, o policial, o marido. "Isso amplia a dimensão simbólica da narrativa", destaca Marcelo, explicando como a escolha estética potencializa o alcance reflexivo da obra.
A escrita de Louis é marcada por um fluxo de consciência que ignora regras formais da gramática, como se as palavras escorressem diretamente da alma. "É uma escrita muito direta, que já parece ter uma voz cênica. Ele conversa com o leitor de forma crua, honesta, como quem compartilha uma ferida ainda aberta", descreve Marcelo. Essa característica encontrou no teatro um terreno fértil, seguindo a linha da adaptação europeia de "O Fim de Eddy", dirigida por Jessica Gazon, que já havia transformado o romance em polifonia cênica.
Para Luiz Felipe Reis, cofundador da Polifônica e idealizador do projeto, o interesse pela obra de Édouard surge como desdobramento de uma investigação contínua sobre diferentes modos de violência, sobretudo os que constituem o mundo masculino. "Édouard reflete e escreve sobre violência social, política, econômica, cultural, racial, sexual, de gênero, ou seja, sobre inúmeras formas de produção e de circulação da violência, sobre todo um circuito de violência que rege nossos comportamentos e pensamentos, sociais e individuais", completa.
O espetáculo mergulha no confronto de versões presente em "História da Violência", onde Louis e sua irmã narram de maneiras distintas um mesmo evento traumático. Essa estrutura dramatúrgica cria um embate de memórias e olhares sobre o trauma, aprofundando o debate sobre verdade, representação e subjetividade. "É um conflito dramático muito rico", observa Marcelo. "E traduz essa urgência de entender o outro lado, de perceber que a violência nunca é apenas um ato isolado, mas um sistema que se impõe sobre os corpos."
A montagem questiona as estruturas sociais que viabilizam a produção e reprodução da violência. E reflete sobre machismo, racismo e homofobia, revelando como essas forças opressivas se entrelaçam. "Tem algo de profundamente transformador nessa transposição. A dor de Édouard vira um ritual de exposição e reinvenção, e nos convida a pensar onde a justiça nunca foi pensada", destaca Marcelo.
SERVIÇO
EDDY - VIOLÊNCIA & METAMORFOSE
Teatro Poeira (Rua São João Batista, 104, Botafogo)
Até 31/8, de quinta a sábado (20h) e domingo (19h)
Ingressos: R$ 120 e R$ 60 (meia)