Por: Affonso Nunes

Quando a palavra grita pelos cantos

Solidão de Caio F. | Foto: Felipe O'Neill/Divulgação

A literatura de Caio Fernando Abreu ganha nova vida nos palcos cariocas com o retorno do espetáculo "Solidão de Caio F." ao Teatro Glauce Rocha, no Centro, a partir deste sábado (5). A montagem mergulha no universo íntimo do escritor gaúcho através de uma montagem que entrelaça dois de seus contos mais emblemáticos com correspondências pessoais dos anos finais de sua vida.

Sob direção de Alexandre Mello, a peça constrói um diálogo poético entre "Uma praiazinha de areia bem clara, ali, na beira do sanga" e "Dama da Noite", dois contos que exploram a solidão urbana e a busca por conexões genuínas nas grandes cidades. O roteiro de Hilton Vasconcellos incorpora ainda cartas escritas pelo autor entre 1987 e 1990, período em que Caio Fernando Abreu enfrentava tanto o avanço da Aids quanto o isolamento social decorrente do preconceito da época.

Na proposta cênica de Mello, um único escritor se desdobra em dois personagens que habitam o mesmo espaço mas pertencem a narrativas distintas. Os atores Hilton Vasconcellos e Rick Yates interpretam, respectivamente, o cérebro e o coração do autor, alternando entre os papéis de criador e criatura em uma dança teatral que evita o encontro direto entre os personagens. A cenografia se inspira no famoso quadro "O Quarto", de Van Gogh, transformando o ambiente em espaço de memória e reflexão.

"Este monólogo-tributo foi escrito durante a pandemia, quando a palavra de Caio parecia 'gritar pelos cantos'. Suas crônicas e cartas nos anos 1990 denunciavam a ignorância em torno de um vírus, também desconhecido, e desmascaravam a covardia dos que usavam a epidemia para impor o ódio e o preconceito", explica Hilton Vasconcellos, que já havia se dedicado ao universo do escritor em 2012, quando permaneceu oito meses em cartaz com "Homens de Caio F.", dirigida por Delson Antunes.

"Solidão de Caio F." dialoga diretamente com questões contemporâneas ao abordar temas como homofobia, desinformação sobre doenças e isolamento social. Rick Yates destaca a potência visual da prosa de Caio Fernando Abreu: "As palavras de Caio parecem ter sido feitas para as ações que nascem no coração. Tudo ali é à flor da pele e nos emociona. O que é descritivo nos seus textos é cinematográfico, gerando imagens que ativam todos os nossos sentidos."

O espetáculo situa a obra de Caio Fernando Abreu no contexto de uma geração que atravessou múltiplas transformações culturais, dos movimentos hippies aos clubbers dos anos 1980, sendo devastada pela epidemia de Aids.

Morto em 1996, aos 47 anos, Caio Fernando Abreu deixou uma obra que permanece atual em sua abordagem da solidão metropolitana e dos conflitos identitários. Seus contos, marcados por uma narrativa cinematográfica e linguagem ao mesmo tempo delicada e ácida, retratam personagens em busca de autenticidade em meio ao caos urbano.

SERVIÇO

SOLIDÃO DE CAIO F.

Teatro Glauce Rocha (Av. Rio Branco, 179 - Centro)

De 5 a 27/7, sextas e sábados (19h) e domingos (18h)

Ingressos: R$ 60 e R$ 30 (meia)

 

Alexandre Mello: 'Difícil comparar Caio Fernando Abreu com qualquer autor'

Alexandre Mello, diretor teatral | Foto: Mery Bley/Divulgação

Por Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Depois de rasgar miocárdios em 2024, quando era encenado no ateliê do encenador Alexandre Mello, num experimento "entre quatro paredes", de intimismo radical, "Solidão de Caio F." vai buscar a ribalta do Teatro Glauce Rocha, no Centro, a partir deste sábado (5), testando sua potência de fazer plateias chorarem noutra geografia cênica.

Seu diretor viveu um pico de excelência com esse trabalho que não esconde sua vertente de pesquisa e sua alma de melodrama, ao cantar a prosa do escritor gaúcho Caio Fernando Abreu (1948-1996). Livros como "O Ovo Apunhalado" e "Limite Branco" atestam sua grandeza e asseguram sua permanência nas Letras.

A partir de escritos dele, Alexandre faz de "Solidão de Caio F." a cartografia da angústia afetiva nas metrópoles brasileiras, ao mesmo tempo que discute homofobia. Na trama, um único homem, o escritor, desdobra-se em dois personagens, que estão em um mesmo ambiente, mas não se encontram, por pertencerem a contos diferentes. Os atores Hilton Vasconcellos e Rick Yates são cérebro e coração do autor, num mesmo espaço-tempo, contracenando indiretamente. Quando um é autor, o outro é personagem e vice-versa.

Responsável por uma direção coruscante, Alexandre situa a gente nesse experimento no papo a seguir.

De que maneira Caio Fernando Abreu te tocou e o que ele trouxe de mais avassalador para a sua geração?

Alexandre Mello - A leitura, na adolescência, de "Morangos Mofados" fez despertar na minha geração a consciência de que não estávamos sozinhos em nossos desejos de liberdade para viver a sexualidade e que a vida era curta para ficar na sombra da sociedade.

Signos como o filme "Querelle", de Fassbinder, e a cantora Maysa te oferecem que alicerces para a construção de uma dramaturgia que expanda o entendimento da prosa de Caio?

"Querelle", assim como outras obras da cinematografia de Rainer Fassbinder, expressam corajosamente a profundidade das dores da alma humana e traz luz às sombras que arrastam a vida de quem não olha para elas. O quê Fassbinder fez com Querelle, Caio faz o conto "Uma Praiazinha De Areia Bem Clara Ali Na Beira Do Sanga". Assim que li, percebi que o isolamento do personagem e sua loucura, advindos do crime cometido na adolescência, tinham a ver com a crueldade da vida imposta aos homossexuais naqueles tempos. A marginalidade, a violência, o estupro. "O amor com fissura, chato nos pentelhos e doença". Maysa, com "Ne Me Quittez Pas", é maior que Jacques Brel, na representação da impossibilidade de manter a pessoa amada eternamente ao lado. Caio desejou toda a vida um amor verdadeiro.

Existem novos Caios hoje na arte? Alguém que você leia e te sirva de parâmetro de mundo?

Difícil comparar Caio Fernando Abreu com qualquer autor. Penso que o Édouard Louis é inspirador e ousado. São diferentes, mas são ambos potentes. Caio tem uma qualidade humana de expressão da dor e da materialidade das imagens da vida, que parece os plano-sequência dos capítulos da série "Adolescência", de Stephen Graham. Potentes, reais, cruéis, belos e emocionantes. Aline Bei, Julián Fuks e Luísa Geisler são autores brasileiros contemporâneos com talento imenso. Gosto muito dos três.

O que você leva da pesquisa espacial da encenação no seu apartamento para a nova incursão naquela dramaturgia?

Quando fizemos no meu ateliê em Laranjeiras, desejávamos tocar o público com a mesma delicadeza e crueza dos textos do Caio, para ficarmos próximos, íntimos. Como utilizamos as cartas (dele) aos amigos na dramaturgia, queríamos manter essa mesma intimidade que estas revelam com o público. Como se cada um recebesse em sua casa um envelope contendo uma carta pessoal de seu amigo Caio F. O mesmo se dá com as personagens Dama da Noite e o amigo do Dudu. Eles são estranhamente próximos de nós, são um pouco da nossa sombra: me lembram Clarice no "se eu fosse eu". Agora, na remontagem para o palco do Teatro Glauce Rocha, o desafio é manter numa dimensão de espetáculo, a mesma proximidade e intimidade com o público. Estou muito feliz com essa remontagem. Esperamos essa e outras temporadas por aí. Ano que vem estaremos em São Paulo.