Companhia fundada por Luiz Felipe Reis e Júlia Lund, a Polifônica celebra 10 anos de trajetória com a estreia do espetáculo "Eddy — violência & metamorfose", baseado em três obras do escritor Édouard Louis — "O Fim de Eddy", "História da Violência" e "Mudar: Método". A proposta absolutamente original de reunir, num único espetáculo, publicações distintas do autor teve o aval caloroso do próprio Édouard Louis.
A nova cena artística do século 21 tem revelado uma transformação importante: a emergência de vozes vindas das periferias, favelas e pequenos povoados. São artistas que trazem no corpo e na palavra as marcas da exclusão e, por isso mesmo, uma arte que pulsa com urgência. É nesse contexto que a obra do francês Édouard Louis se destaca. Escritor, sociólogo e filósofo, Louis deixou uma vila operária para estudar na prestigiada École Normale Supérieure, em Paris. Sua literatura, visceral e autobiográfica, tornou-se um fenômeno político e cultural.
Marcelo Grabowsky, co-diretor, conta que o processo criativo começou logo após o espetáculo Amor em Dois Atos. "Fomos profundamente tocados pela escrita de Édouard Louis. Primeiro com O Fim de Eddy, depois com História da Violência, ainda inédito no Brasil na altura. A ideia foi cruzar os dois livros, depois incluímos um terceiro, que abordam tanto a descoberta da sexualidade em um ambiente opressor quanto um episódio traumático vivido por ele em Paris."
A escrita de Louis é marcada por um fluxo de consciência que ignora regras formais da gramática, como se as palavras escorressem diretamente da alma. Ele transforma sua experiência pessoal em uma denúncia social que reverbera. Como descreve Marcelo, "é uma escrita muito direta, que já parece ter uma voz cênica. Ele conversa com o leitor de forma crua, honesta, como quem compartilha uma ferida ainda aberta".
"En finir avec Eddy Bellegueule", romance de estreia de Louis, foi mais do que uma autobiografia: tornou-se um manifesto íntimo. Nele, o autor narra sua infância entre agressões, silêncios e a opressão de uma comunidade marginalizada. A dor individual se transforma em grito coletivo. Esse gesto literário continua em obras posteriores como História da Violência, Quem Matou Meu Pai e Mudar: Método, sempre com a intenção de desnaturalizar as violências que nos rodeiam.
Na montagem brasileira, Marcelo destaca a importância de trazer para o palco essa dimensão coletiva da obra. "A peça conta com três atores — João Cortes, Igor Fortunato e Júlia — que assumem múltiplos papéis. Isso amplia a dimensão simbólica da narrativa. Eles transitam entre personagens que compõem o entorno de Édouard: o agressor, a irmã, o policial, o marido...".
A estética de Louis encontrou no teatro um terreno fértil. A adaptação de O Fim de Eddy, dirigida na Europa por Jessica Gazon, já havia transformado o romance em polifonia cênica, com quatro atores revezando-se no papel principal. Marcelo e sua companhia seguem essa linha. "O teatro foi um lugar de salvação para o Édouard, e colocá-lo em cena é um gesto de reconhecimento. É sobre como a arte pode transformar alguém. E, ao mesmo tempo, como alguém pode transformar a arte."
O espetáculo também mergulha no confronto de versões presente em História da Violência, onde Louis e sua irmã narram de maneiras distintas um mesmo evento. Essa estrutura dramatúrgica cria um embate de memórias e olhares sobre o trauma, aprofundando o debate sobre verdade, representação e subjetividade. "É um conflito dramático muito rico", diz Marcelo. "E traduz essa urgência de entender o outro lado, de perceber que a violência nunca é apenas um ato isolado, mas um sistema que se impõe sobre os corpos."
Para Luiz Felipe Reis, cofundador da Polifônica e idealizador do projeto seu interesse pela obra do Édouard surge como desdobramento dessa investigação contínua que vem realizando sobre diferentes modos de violência, sobretudo os que constituem o mundo masculino — seu ethos e psiquismo, as regras e normas das sociedades patriarcais e, sobretudo, do regime totalitário do capital sob o qual estamos todos subjugados.
"Édouard reflete e escreve sobre violência social, política, econômica, cultural, racial, sexual, de gênero, ou seja, sobre inúmeras formas de produção e de circulação da violência, sobre todo um circuito de violência que rege nossos comportamentos e pensamentos, sociais e individuais", completa Luiz Felipe.
"Tem algo de profundamente transformador nessa transposição. A dor de Édouard vira um ritual de exposição e reinvenção, e nos convida a pensar onde a justiça nunca foi pensada", destaca Marcelo.
SERVIÇO
EDDY - VIOLÊNCIA E METAMORFOSE
Mezanino do Sesc Copacabana (Rua Domingos Ferreira, 160)
De 19/6 A 13/7, de quinta a domingo (20h30)
Ingressos: R$ 30, R$ 15 (meia) e R$ 10 (associado Sesc)