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Uma comédia constrangedora para sorrisos amarelos

Chega ao fim no CCBB Rio de Janeiro a ocupação comemorativa de 20 anos do gruupo maranhense A Pequena Companhia de Teatro. Para encerrar a temporada, o grupo apresenta nesta segunda-feira (9) o espetáculo "Desassossego", uma coprodução com a Cia. A Máscara de Teatro, do Rio Grande do Norte, dirigida por Marcelo Flecha. O grupo aprsesentou nesta temporada carioca quatro criações com fortes vínculos com a literatura universal.

Livremente inspirado em "O Livro do Desassossego", de Fernando Pessoa, o espetáculo convida o espectador a mergulhar numa experiência cênica sensorial e provocadora. Considerada uma das obras-primas do modernismo português, a publicação reúne fragmentos literários deixados por Pessoa sob o heterônimo Bernardo Soares. Trata-se de um livro inacabado e profundamente introspectivo, marcado por reflexões filosóficas, existenciais e poéticas sobre o cotidiano, a solidão e o sentido da vida experimentados por Pessoa sob a ótica do ajudante de guarda-livros de Lisboa.

É justamente esse espírito de inquietação e dúvida que a montagem transpõe para a cena, de forma metalinguística e inventiva. Em cena, os atores Luciana Duarte e Jeyzon Leonardo interpretam versões de si mesmos numa encenação que se assume como "comédia constrangedora para sorrisos amarelos". Diante da plateia, o processo de criação teatral é desmontado em tempo real, revelando seus impasses, fracassos e contradições — um espelho das inquietações da própria vida.

Mais do que uma narrativa linear, "Desassossego" é um manifesto poético e político sobre o ofício do artista, a precariedade da cultura no Brasil e a persistência de criar apesar das adversidades. A montagem foi construída ao longo de quatro anos, incluindo o período da pandemia, a partir de um processo colaborativo entre elenco e direção baseado no conceito de Teatro Polidramático — em que dramaturgia, vivência pessoal e investigação estética se entrelaçam.

O espetáculo encerra uma ocupação que se destacou pela relação direta entre teatro e literatura. A temporada foi aberta com "Velhos Caem do Céu Como Canivetes", obra inspirada no conto "Un Señor Muy Viejo con unas Alas Enormes" de Gabriel García Márquez. A peça apresenta um encontro inesperado entre um ser humano (um catador de lixo) e um ser alado, em um cenário pós-apocalíptico permeado de desesperança.

Na sequência, "Pai & Filho" apresentou uma livre adaptação de "Carta ao Pai", um dos textos mais viscerais de Franz Kafka: a publicação póstuma de uma carta que escritor tcheco escreveu para o seu pai e que nunca chegou a ser enviada.

Já "Ensaio sobre a Memória" partiu do conto "A Outra Morte", do escritor, poeta e ensaísta Jorge Luís Borges. Aqui um escritor e sua assistente iniciam uma pesquisa para a escrita de um novo conto. O objeto de pesquisa é um senhor que se engajou contra um regime militar latino-americano e foi torturado. Por não resistir à tortura entregou seus pares, e passou a vida esperando uma segunda chance para remediar essa fraqueza.

Estreado em 2023, "Desassossego" já circulou por festivais no Maranhão, Ceará e Rio Grande do Norte, como o Façaí (Açailândia), o Festival Popular de Teatro de Fortaleza e o Festival Myriam Muniz. Agora, no Rio, encerra não apenas a temporada, mas uma trajetória que reafirma o compromisso da companhia com um teatro de pensamento, linguagem refinada e diálogo profundo com a literatura.

SERVIÇO

DESASSOSSEGO

CCBB Rio de Janeiro (Rua Primeiro de Março, 66 - Centro) | 9/6, às 18h

Ingressos: R$ 30 e R$ 15 (meia)