Aos 85 anos, a ex-atriz Laura Gomes vive isolada após um episódio traumático. Seu diagnóstico flutua entre esquizofrenia e transtorno dissociativo de identidade. Em estado catatônico, ela se cala para o mundo, mas, em rompantes compulsivos, sua voz explode no palco, encarnando personagens femininas da tradição ocidental — de Shakespeare a Molière, de Brecht a Sófocles. É nesse limiar entre colapso psíquico e arte cênica que se constrói o espetáculo "9", que reestreia nesta sexta-feira (6) no Espaço Sergio Porto, no Humaitá.
Dirigido por Demetrio Nicolau, com dramaturgia assinada por ele e por Nara Keiserman, o monólogo convida o público a refletir sobre o papel da arte — e do próprio teatro — como possibilidade de cura ou escuta diante do sofrimento mental. A plateia assume a função simbólica de testemunha, mas também de colaboradora do processo terapêutico, como se estivesse integrada a um experimento cênico-médico em tempo real. "Será que as comunidades médica e teatral são capazes de colaborar com a cura de Laura Gomes?", provoca o coletivo Delicadas Criaturas, que assina a montagem.
No palco, a atriz Nara Keiserman interpreta nove personagens femininas clássicas, organizadas em torno dos chamados "nove rasas" — as emoções fundamentais descritas no "Natyasastra", tratado indiano milenar sobre performance. Essa concepção estética serviu de base para o rasaboxes, método de preparação do ator criado por Richard Schechner, referência do teatro performativo contemporâneo.
A cada mudança emocional, uma nova persona se revela. O cenário, os figurinos e a luz são mínimos, quase invisíveis, e funcionam como suporte para uma composição centrada no trabalho vocal e gestual da intérprete. Cada personagem ganha corpo e timbre próprios, refletindo com precisão a emoção central que a move. O resultado é uma partitura cênica meticulosa, que oscila entre o lirismo e o desamparo, entre o riso e o abismo.
"9" é o terceiro trabalho do Delicadas Criaturas, coletivo criado em 2021 por Demetrio Nicolau, Nara Keiserman, Marcus Fritsch e Carlos Alberto Nunes. A proposta do grupo nasce da crença de que a delicadeza, longe de ser fragilidade, é potência — um modo de estar no mundo que resiste à brutalidade cotidiana e encontra no teatro um espaço de pausa, escuta e presença.