Por: Rodrigo Fonseca | Especial para o Correio da Manhã

Perfume de excelência

Selton Mello em 'O Cheiro do Ralo', que virou um sucesso comercial surpreendente para títulos de orçamento baixo | Foto: Divulgação

 

Dono de um currículo invejável de láureas numa travessia que incluiu as telas de Sundance, nos EUA, "O Cheiro do Ralo" (2006) fez a indústria cultural do audiovisual descobrir um multiverso de loucuras e genialidades chamado Lourenço Mutarelli, um dos quadrinistas mais singulares do país em trânsito para a literatura. Ele é ator no badalado "Que Horas Ela Volta?", que botou o Brasil no bolso há dez anos.

Faz um pai e marido (rico e entediado) que integra o núcleo dos patrões de Regina Casé no sucesso de Anna Muylaert. Ela incluiu esse artista gráfico no elenco de "A Melhor Mãe Do Mundo", projetado (e elogiado) na Berlinale, em fevereiro. Mutarelli atua no filme baseado em seu experimento literário mais famoso.

Seu "O Cheiro..." foi parar nas salas de cinema pelas mãos do diretor Heitor Dhalia. Estreou no Festival do Rio 19 anos atrás e ganhou lá o Grande Prêmio do Júri, o Prêmio da Crítica da Fipresci (sigla para Federação Internacional de Imprensa Cinematográfica) e o troféu de Melhor Ator, entregue a uma estrela que foi um sol para o longa-metragem: o mineiro Selton Mello. A atuação magistral dele volta a brilhar agora que a produção ganha uma nova vitrine: a MUBI.

Selton vem sucessivamente somando vitórias recentes. Está no ar no Globoplay no papel do engenheiro e ex-deputado Rubens Paiva de "Ainda Estou Aqui", que vendeu 5,8 milhões de ingressos e ganhou o Oscar. Paralelamente, combinou forças com Matheus Nachtergaele para conduzir "O Auto da Compadecida 2" à marca de 4,2 milhões de pagantes, de 25 de dezembro até março. Agora, a engraçada aventura de João Grilo e Chicó se populariza na Amazon Prime. Envolvido no remake de "Anaconda" nos Estados Unidos, com Jack Black e Paul Rudd, Selton há de voltar ao circuito este ano ainda com "Enterre Seus Mortos", de Marco Dutra, além de estar empenhado na nova temporada da série "Sessão de Terapia". A entrada de "O Cheiro do Ralo" no www.mubi.com expande suas chances de se comunicar com novas plateias, via streaming.

Conhecido pelo thriller soturno "Nina" (2004), Dhalia ganhou prestígio internacional depois de ter adaptado o livro de Mutarelli, tendo Selton também no posto de produtor. O astro visitava as salas de exibição em que a fita era lançada, como o Odeon, para clamar pela atenção do público pagante a uma narrativa inusitada para os padrões nacionais da chamada Retomada. Era esse o nome da onda de produções idealizadas e lançadas de 1995 a 2010 - entre "Carlota Joaquina - A Princesa do Brasil" e "Tropa de Elite 2" - à força de editais e fomentos públicos, a se destacar a Lei do Audiovisual, surgidos como resposta política à extinção da Embrafilme.

"'O Cheiro do Ralo' foi um filme de repercussões inimagináveis", orgulha-se Dhalia, em depoimento ao Correio da Manhã, carregando no currículo uma indicação ao Prix Un Certain Regard de Cannes com "À Deriva" (2009). "O filme impulsionou minha carreira para fora do Brasil, quando fomos selecionados para Sundance. Ganhamos a Mostra de São Paulo. O filme virou um clássico do nosso cinema exatamente pelo elemento de subversão narrativa contido nele. Amo esse filme até hoje. É uma referência na minha obra".

Na trama, fotografada de modo dionisíaco por José Roberto Eliezer, Selton vive Lourenço, dono de uma loja de penhores que humilha seus clientes numa prática sádica de pequeno poder que arranha a perversidade. Maltrata uma jovem na fissura que lhe pede ajuda, esculhamba um idoso dizendo "não gostei da sua cara" e é rude com um encanador que tenta dar conta de um de seus maiores desafios: uma fragrância pútrida que sai da fossa de sua loja. É como se o odor de enxofre do Inferno estivesse saindo do tal ralo do título. Em meio a uma histeria com esse futum, Lourenço se apaixona por (um detalhe da anatomia de) uma garçonete (Paula Braun).

Rodado num esquema financeiro de cinto apertado, apoiado na camaradagem da equipe, "O Cheiro do Ralo" virou um sucesso comercial surpreendente para títulos de orçamento baixo (fontes da época estimam seu custo em R$ 300 mil). "'O Cheiro do Ralo' me ensinou que qualquer filme pode ser feito. Aprendi a acreditar na força dos universos fechados, quando tema e partido estético dão as mãos numa unidade explosiva", diz Dhalia, que, associado a séries de sucesso ("Arcanjo Renegado" e "DNA do Crime"), tem projetos cinematográficos por vir. "Estou desenvolvendo dois longas: uma adaptação dos 'Sertões' de Euclides da Cunha e um filme sobre a remoção das favelas da Zona Sul do Rio de Janeiro no final dos anos 1960", revela o realizador.