Quem tem medo de poesia? Ou da língua portuguesa? Gregório Duvivier não só não tem, como quer provar que ninguém deveria ter. Para isso, usa a melhor arma que conhece: o palco. Em "O Céu da Língua", ele transforma a palavra em espetáculo e convida o público a enxergar o que já está ali, no dia a dia: a poesia escondida nas conversas, nas gírias, nos tropeços da língua, que se revelam a nós sem que sejamos capazes de percebê-la. A peça estreou em Portugal com grande sucesso e agora chega ao Brasil, em temporada no recém-reformado Teatro Carlos Gomes.
"A poesia é um terreno minado por mal-entendidos. Às vezes, vira piada; outras, é tratada como algo hermético, inacessível", reflete Gregório, que estudou Letras na PUC-Rio e já publicou três livros de poemas. "Mas se trocarmos os óculos de leitura, tudo muda. Essa peça é um convite para esse novo olhar."
E parece que deu certo. Em sua passagem por Portugal, a montagem foi celebrada pela crítica. "No aniversário de 500 anos de Camões, foi um brasileiro quem roubou a cena", escreveu Miguel Esteves Cardoso, do jornal O Público.
A direção é de Luciana Paes, parceira de Gregório no espetáculo de improviso "Portátil" e nos vídeos do Porta dos Fundos, um fenômeno de audiência no YouTube.
Mas, desta vez, não há cenário elaborado, nem grandes efeitos. O palco está nu. A música vem do contrabaixo de Pedro Aune, as imagens das projeções de Theodora Duvivier, irmã do ator. O resto é só Gregório, armado de palavras afiadas e uma devoção quase religiosa pela língua. "Eu acredito no Gregório como alguém que joga ideias no mundo. E isso me move, muito mais do que qualquer rótulo", diz Luciana, fundadora da Cia. Hiato, que agora estreia como diretora teatral.
"O Céu da Língua" está longe de ser um recital, mas também não pode ser rotulado como um stand-up. "A comédia aqui é um truque, um golpe de vista. No fundo, estamos falando de literatura", explica Luciana. "A peça fica na esquina entre o poema e a piada", completa Gregório.
Desde criança, ele tem obsessão pelas palavras, por seus sons, suas curvas e mistérios. No espetáculo, joga luz sobre pequenos absurdos da língua: as reformas ortográficas que matam acentos, os neologismos que se tornam chavões (disruptivo, briefing, atravessamento), os vocábulos que, só de ouvir, causam arrepio (afta, íngua, seborreia). Tudo isso vira humor, numa dança entre o erudito e o mundano.
A poesia, ele lembra, está em toda parte. Nas expressões que usamos sem pensar - batata da perna, céu da boca, pisando em ovos - e, principalmente, na música. Gregório resgata versos de Orestes Barbosa e Caetano Veloso, prova de que a palavra cantada alcançou algo que a literatura nunca conseguiu: lotar estádios. "A massa ainda há de comer o biscoito fino que fabrico", dizia Oswald de Andrade. Mas talvez o Brasil tenha trocado o biscoito pelos acordes.
No fim, o que Gregório se propõe a mostrar é que a poesia não é bicho de sete cabeças, não está em outro plano, inalcançável. Está aqui, nas nossas bocas, nos nossos ouvidos. "Minha pátria é a língua portuguesa", disse Fernando Pessoa. Caetano completou: "Eu não tenho pátria, eu tenho mátria e quero frátria".
E é assim, com palavras que ressoam como música, que "O Céu da Língua" insiste em nos lembrar que, apesar de todas as diferenças, é a língua que nos une. E, se permitirmos, pode até nos fazer gargalhar.
SERVIÇO
O CÉU DA LÍNGUA
Teatro Carlos Gomes (Praça Tiradentes s/nº)
Até 24/2, quintas e sextas (19h), sábados e domingos (18h)
Ingressos: R$ 80 e R$ 40 (meia)