Com duas indicações ao Prêmio Shell de Teatro de 2024, nas categorias direção (Pedro Sá Moraes) e cenografia (Ricardo Siri), "Hereditária" volta aos palcos cariocas em curta temporada no Espaço Cultural Sérgio Porto. Idealizado pela artista Moira Braga, o espetáulo parte da descoberta, aos sete anos de idade, de uma condição genética rara (Stargardt), que causaria a perda de sua visão, para investigar os múltiplos sentidos da hereditariedade, do genético ao social.
Há quase duas décadas atuando como autora, bailarina e atriz em espetáculos de dança, teatro e no audiovisual, esta é a primeira vez que Moira traz ao palco sua biografia, e tematiza a doença. "A ideia é dar uma resposta larga sobre de onde ela vem", explica Moira. "E abrir a reflexão para um leque mais amplo, investigando o que são nossas heranças e nossa hereditariedade, tudo que chega pra nós através da ancestralidade, tudo que fica pelo caminho, assim como as heranças que escolhemos ter".
A dramaturgia, composta pela atriz junto com Pedro Sá Moraes, entrelaça eventos da vida pessoal e dos antepassados de Moira a referências históricas e mitológicas — como o mito grego das Moiras: três irmãs funestas que tecem o destino de todos os seres. Entre o biográfico, o poético e o político, "Hereditária" reflete sobre o quanto de nossas vidas é predeterminado e o quanto temos o poder de escolher.
Para além de uma contrapartida social, a montagem tem a ampliação dos acessos na raiz de sua concepção — o que é marca registrada dos trabalhos de Moira. No palco, a idealizadora contracena com duas outras atrizes, Luize Mendes Dias, também intérprete de libras, e Isadora Medella, também multi-instrumentista. Libras e audiodescrição estão entrelaçadas de forma orgânica desde a dramaturgia até as movimentações de cena, expandindo as fronteiras do que costuma se compreender por acessibilidade. "Esse é naturalmente meu ponto de partida", diz Moira, "quero que o meu trabalho acesse o maior número de pessoas e, por isso, fomos concebendo mecanismos estéticos e dramatúrgicos que proporcionem a expansão desse acesso".
Atravessada por canções originais compostas por Sá Moraes, a narrativa possui uma abordagem estética diferente do que costuma se entender por teatro musical. A direção musical, assinada por Pedro junto com Isadora Medella, explora as vozes, os corpos e até os objetos cênicos como instrumentos musicais. Nesta forma de fazer teatro, que recebe o nome de Teatrocanção "a musicalidade é o norte que ajuda a encontrar o tom da atuação, a pulsação de cada cena, mesmo quando não há nenhuma nota musical sendo tocada", diz o diretor, indicado ao Prêmio Shell em 2023 pela direção musical e canções originais do espetáculo "Em Busca de Judith".
O cenário é uma instalação visual e sonora do músico e artista plástico Ricardo Siri. É composto por objetos que, ao serem manipulados (pisados, percutidos, tocados, transportados) produzem os ambientes e sonoridades da peça. Para que pessoas cegas e de baixa visão tenham acesso a este cenário, serão convidadas a entrar no teatro alguns minutos antes da abertura de portas e explorar os objetos cênicos de forma táctil.
Ao contrário dos musicais tradicionais, com números de dança virtuosísticos, a direção de movimento assinada pelo performer, ator e professor da UFBA, Edu O. parte da diversidade de potências de cada corpo para compor gestos e movimentos cênicos. Primeiro professor de dança cadeirante de uma universidade pública brasileira, Edu é referência no debate sobre a deficiência nas artes, e traz sua reflexão a respeito do capacitismo, ou bipedismo compulsório para a criação de "Hereditária".
O capacitismo é um conjunto de ações e perspectivas excludentes, que refletem de forma cotidiana uma realidade social bastante grave. Um levantamento do Ministério da Saúde revela que o Brasil possui, atualmente, 45 milhões de pessoas com algum tipo de deficiência, representando 23,9% da população. Destas, quase 70% não concluíram o ensino fundamental e apenas 1% estão no mercado de trabalho.
"Esta exclusão é uma espécie de herança: de desigualdades ancestrais, de preconceitos enraizados e solidificados em oportunidades que se abrem para alguns e fecham para outros. O projeto Hereditária nasce de um desejo de explorar, de forma criativa, poética, mas também política e lúcida, as diferentes dimensões das heranças que atravessam a vida do indivíduo com deficiência, e da sociedade como um todo", explica Moira, acrescentando que existem boas políticas públicas para pessoas com deficiência, como o percentual mínimo de PCDs em produções artísticas, mas ela alerta sobre a falta de informação da população em geral. "O que precisamos agora é a ampliação do acesso à informação. Me choca a falta de conhecimento sobre o que estamos fazendo, o que é uma audiodescrição, como faz, porque é necessária. A gente precisa falar muito sobre isso. Precisamos que os patrocinadores se interessem, que o público queira conhecer", afirma.
SERVIÇO
HEREDITÁRIA
Espaço Cultural Sérgio Porto (Rua Visconde de Silva, s/nº - ao lado do nº 292 - Humaitá)
De 31/1 a 23/2, às sextas e sábados (20h) e domingos (19h) | ngressos: R$ 50 e e R$25 (meia)