Por: Affonso Nunes

Artista que é artista não se entrega!

Sob o olhar de Corisco, Othon Bastos repassa sua impecável carreira no monólogo autobiográfico 'Não Me Entrego Não' | Foto: Divulgação

Ohon Bastos retorna aos palcos cariocas em apresentação única do premiado solo 'Eu Não me Entrego Não!' em festival dosd 60 anos do Teatro Gláucio Gill

Nesta terça (4) o Teatro Gláucio Gill recebe "Não Me Entrego, Não!", monólogo que celebra a trajetória de Othon Bastos e se tornou um dos fenômenos teatrais cariocas dos últimos anos. O espetáculo integra o "Festival Todos no TGG - 30 Espetáculos em 30 dias", maratona que celebra os 60 anos da casa, e chega após temporada de sucesso que rendeu ao ator de 91 anos os prêmios de Melhor Ator no Shell e no APTR, duas das principais premiações do teatro brasileiro.

O talento de Othon é tão incontestável que Fernanda Montenegro, grande dama do teatro brasileiro, reagiu à estreia do monólogo dizendo ao colega: "Você nunca errou". Estreado em junho de 2024, o espetáculo rapidamente conquistou público e crítica, estabelecendo-se como marco na carreira de um dos mais importantes atores brasileiros vivos. A temporada no Teatro Vanucci, no Shopping da Gávea, registrou casas lotadas e ovações prolongadas. A peça também venceu o prêmio Fita (Festa Internacional de Teatro de Angra) e foi indicada em cinco categorias no APTR, incluindo Melhor Dramaturgia e Direção para Flávio Marinho, Melhor Espetáculo e Melhor Produção Não-Musical.

 

A arte encarada como vocação da qual não se pode fugir

Othon Bastos, o maior ator brasileiro vivo, no monólogo 'Não Me Entrego Não!' | Foto: Divulgação

Com texto e direção de Flávio Marinho, "Não Me Entrego, Não!" conduz o público pelos bastidores de mais de sete décadas dedicadas ao teatro, ao cinema e à televisão. Em cena, Othon Bastos interage com uma figura simbólica — a Memória — que resgata passagens emblemáticas de sua trajetória. O espetáculo transita entre humor, emoção e reflexões sobre arte, política e vida, transformando lembranças pessoais em testemunho sobre a cultura brasileira.

A dramaturgia de Marinho constrói um retrato íntimo do artista sem idealizar o personagem. Num dos trechos mais contundentes, o veterano ator declara: "Artista, o teu nome já nasce na lista dos que vão sangrar de paixão e dor. É marca, é sina, não tem remissão. Vai cumprir missão até se esvair com o teu sinal da cruz, tua dor de raiz. Criar é mais importante que ser feliz." É a arte encarada como uma vocação da qual não se pode fugir, marcada por sacrifícios e entrega absoluta.

Entre as passagens mais celebradas pelo público está a que recorda o convite de Glauber Rocha para "Deus e o Diabo na Terra do Sol", filme de 1964 que se tornaria marco do Cinema Novo e eternizaria Othon Bastos como Corisco. No espetáculo, o ator imita o diretor: "Othon, vem comigo, preciso de você para fazer meu filme". Othon explica que estava ensaiando uma peça e não podia se ausentar. "Eu compro o teu passe!", insiste Glauber. "E lá fomos para o teatro. Não é que ele convenceu a produção a me liberar por duas semanas por cem mil cruzeiros?", relembra o ator.

O diálogo com a Memória revela então o valor irrisório da transação. "Quanto vale cem mil cruzeiros hoje?", pergunta Othon. "Trinta e seis reais e quarenta e cinco centavos", responde a personagem. "E lá fui eu para o fim do mundo fazer 'Deus e o Diabo na Terra do Sol' por R$ 36,45", conclui o ator, arrancando risos da plateia.

A carreira de Othon Bastos atravessa momentos decisivos da cultura brasileira. No cinema, além do cangaceiro Corisco, da obra-prima de Glauber; interpretou o poderoso coronel Irapuan em "O Grande Sertão" (1965), de Geraldo Santos Pereira; e participou de filmes fundamentais como "São Bernardo" (1972), de Leon Hirszman; "O Amuleto de Ogum" (1974), de Nelson Pereira dos Santos; e "Abril Despedaçado" (2001), de Walter Salles. Na televisão, integrou o elenco de novelas que marcaram época, como "Renascer" (1993), "O Rei do Gado" (1996), "Senhora do Destino" (2004) e "Velho Chico" (2016).

"Eu estava só fazendo filmes e televisão, e o teatro ficou um pouco para trás. E eu sentia que dentro de mim o teatro dizia que estava na hora de voltar. Eu fui ver um espetáculo do Flávio Marinho, de quem sou amigo há quase 50 anos, o 'Judy: O Arco-Íris É Aqui', com Luciana Braga, e saí encantado. Cheguei em casa, falei com a minha mulher e surgiu a ideia de falar com o Flávio para ele fazer um espetáculo parecido para mim. E, então, começamos a conversar. Eu levei umas 600 páginas de anotações sobre os meus trabalhos no teatro, e passamos a separar por assuntos. Esse monólogo não é uma biografia, apenas passa por coisas que aconteceram na minha vida", disse em entrevista recente ao poprtal da revista Veja.

O reconhecimento recente com os prêmios Shell e APTR coroa uma carreira que já acumulava inúmeras distinções, mas também reafirma a vitalidade artística de Othon Bastos aos 91 anos. É um espetáculo imperdível.

SERVIÇO

NÃO ME ENTREGO NÃO!

Teatro Gláucio Gill (Praça Cardeal Arcoverde, s/nº - Copacabana)

4/11, às 20h

Ingressos: R$ 20 e R$ 10 (meia)