Por: Affonso Nunes

As origens do teatro brasileiro em cinco atos

Sergio Fonta selcionou obras de Martins Pena, Artur Azevedo, José de Alencar, França Junior e João do Rio | Foto: Divulgação

Cinco obras fundamentais da dramaturgia brasileira em seus primórdios ganham destaque no livro "Ribalta Carioca", oferecendo um panorama da produção teatral que floresceu no Rio de Janeiro entre 1845 e 1912. Organizada pelo ator, diretor, dramaturgo e pesquisador Sergio Fonta, a antologia será lançada nesta quarta-feira (2), às 19h, no Teatro Glaucio Gill, em Copacabana. O trabalho apresenta textos que documentam a evolução estética do teatro nacional e as transformações sociais e políticas de uma época em que a então capital imperial (e depois federal) consolidava sua posição como principal centro cultural do país.

A seleção abrange quase sete décadas de produção teatral, iniciando com "O noviço" (1845), de Martins Pena, considerado o fundador da comédia de costumes brasileira, e encerrando com "A bela Madame Vargas" (1912), de João do Rio, cronista da Belle Époque carioca. Entre as duas figuram "O demônio familiar" (1857), de José de Alencar, "Caiu o Ministério" (1882), de França Jr., e "A capital federal" (1897), de Artur Azevedo, formando um conjunto representativo das principais correntes dramatúrgicas do período.

O critério de seleção privilegiou obras que funcionam como documentos históricos de seu tempo, revelando aspectos da vida urbana, dos costumes sociais e das tensões políticas que marcaram a transição do Império para a República. As comédias predominam na coletânea, refletindo a preferência do público da época por espetáculos que combinavam entretenimento e crítica social, enquanto o drama está representado pela contribuição de José de Alencar, autor que transitou entre diferentes gêneros literários.

Em sua pesquisa, Sergio Fonta, ex-colaborador do Correio da Manhã e presidente da Academia Carioca de Letras, desenvolveu um trabalho de contextualização que inclui notas explicativas, sinopses detalhadas e biografias dos dramaturgos.

Os autores reunidos no volume representam diferentes gerações e abordagens estéticas, mas compartilham a característica comum de terem captado, através de suas obras, o espírito de uma época de intensas transformações. Martins Pena estabeleceu os fundamentos da comédia nacional, José de Alencar expandiu as possibilidades temáticas do teatro brasileiro, França Jr. apurou a sátira política, Artur Azevedo consolidou o teatro de revista, e João do Rio introduziu elementos da modernidade urbana na dramaturgia local.

 

Sergio Fonta: 'Quando se pesquisa, se mergulha num fascinante mundo paralelo'

O que motivou a criação desta antologia específica sobre dramaturgia carioca?

Sergio Fonta - Sou um apaixonado pela memória teatral brasileira. Ela sempre me mobiliza. Muitos autores e textos ajudaram a escrever a história do palco nacional. Como no período do Império e, depois, da capital federal o teatro estava concentrado, basicamente, no Rio de Janeiro, esses autores se tornaram "cariocas" mesmo que alguns deles não tivessem nascido aqui, como o cearense José de Alencar ou o maranhense Artur Azevedo. A obra de Azevedo é um primor de carioquice, ele captou profundamente este espírito em seus trabalhos, a alma da cidade. Mas esses textos há muito estavam foram das livrarias e me veio a ideia de reuni-los em um só volume, mas que fosse uma edição comentada, não só nas biografias e sinopses das peças, como também nas notas no final de cada uma delas.

O recorte temporal que você faz na coletânea, entre 1845 e 1912, representa algum ciclo específico do teatro brasileiro? A transição do Império para a República de reflete nas obras selecionadas?

Não necessariamente. Há dezenas de outros autores que poderiam figurar no livro, cada um com sua característica. Penso até, se a Editora Batel concordar, em ampliar a "Ribalta Carioca" com novos volumes. Mas a transição do Império para a República, no caso deste livro, a peça que mais se insere neste período, sem dúvida, até pelo próprio título, é "A Capital Federal", de Artur Azevedo, de 1897.

Como o Rio da época funcionava como "laboratório" para a dramaturgia nacional? Qual era o perfil do público teatral desse período?

A própria cidade, com seu perfil político-social, era um laboratório. No início a corte e, depois, a república eram um prato cheio em matéria de fatos políticos, com seus diversificados "atores", com seus tipos populares, quase sempre vistos pelo lado do humor. As chamadas revistas de ano também cumpriam esse papel, filtrando dramaturgicamente a sociedade daquele tempo. A comédia sempre foi a marca registrada da escolha do público e todas as peças que seguiam esse gênero, todas elas, com forte apelo popular, faziam enorme sucesso, embora a elite não a visse com bons olhos. Havia também uma procura grande pelas óperas e operetas que companhias estrangeiras vinham aqui apresentar.

Essas peças do século 19 e início do 20 dialogam com questões do teatro brasileiro atual?

Algumas chegam a surpreender. Sem fugir de suas características de uma peça escrita no século 19 ou começo do 20, com todo o retrato de uma época, algumas delas se aproximam de fatos que acontecem hoje, com outros nomes e perfis, não exatamente dialogando com o teatro atual, mas sim, de certa forma, com a sociedade contemporânea. Em "O Noviço", por exemplo, há o personagem do espertalhão Ambrósio que é casado, mas que omite isso para formar um novo lar com uma viúva rica. Volta e meia não ouvimos falar de um ou muitos casos como esses nos dias de hoje, alguns escondidos dentro das próprias famílias ou abertamente nas redes sociais de cor marrom? Alguns esquemas políticos absolutamente corruptos de hoje aparecem muito bem definidos em "Caiu o Ministério", de França Júnior, escrita em 1882.

Estudiosos situam Martins Pena como fundador da comédia de costumes brasileira. O que diferencia sua abordagem dos modelos europeus da época?

E é mesmo. Martins Pena é a pedra fundamental da comédia de costumes no Brasil quando escreve O juiz de paz da roça em 1838. Curioso que as célebres máscaras do teatro universal - a comédia e a tragédia - nascem no mesmo ano, no Brasil, pois é também em 1838 que Gonçalves de Magalhães escreve "Antonio José" ou "O Poeta e a Inquisição", apontada como a primeira tragédia brasileira. Só que a tragédia nasceu antes da comédia, lançada em 13 de março. A peça de Pena chega em 4 de outubro. A comédia de costumes feitas no Brasil esse período tinha fluidos do que se fazia na Europa, mas a identidade nacional falava mais alto e lhe dava um perfil social brasileiro.

Você descobriu algum aspecto surpreendente sobre esses dramaturgos ou suas obras durante a pesquisa?

Quando se pesquisa, se mergulha num fascinante mundo paralelo, já pelo simples fato de você estar entrando em outro século e mergulhando em seus subterrâneos ou, então, em suas planícies. É tudo inquietante e instigante, iluminado também quanto através de determinado foco de pesquisa você tem uma revelação, às vezes, de algo que você nem estava buscando, como numa frase irrelevante de uma personagem em "O Demônio Familiar", você, a partir da pesquisa, descobre o nome de um artista italiano que fazia cenários para peças de Alencar.

Você vê interesse das novas gerações por esse período da dramaturgia brasileira?

Quando estruturei este livro pensei muito nos jovens estudantes de teatro, nos professores recém-formados e nos novos encenadores para que eles tivessem uma fonte de inspiração. Por isso, nas notas que aparecem no final de cada peça, procurei explicar a esse público palavras ou lugares que já não existem mais, porém, significaram muito no passado e podem ajudar a esclarecer o que se lê ali e o que se pode, quem sabe, encenar mais adiante.