Jorge Furtado fez História nas veredas da não ficção, 35 anos atrás, ao conquistar o Prêmio do Júri da Berlinale, na Alemanha, com "Ilha das Flores", considerado o maior curta-metragem do país, de todos os tempos, em enquetes da crítica nacional. Foi um dos títulos, em formato pílula, que asseguraram à curadoria do Festival Gramado prestígio em todo o território brasileiro no passado.
Furtado foi uma usina de curtas geniais entre os anos 1980 e 1990, antes de passar para a televisão (como roteirista) e antes de se lançar nos longas-metragens, com joias como "Saneamento Básico" (2007) e "O Homem Que Copiava" (2003). A maratona gramadense sempre está no radar dele e de sua produtora, a Casa de Cinema de Porto Alegre. Não por acaso, ele ganhou um troféu honorário na cidade em 2024, o Eduardo Abelin. Este ano, a presença de seu ensaio (à moda Balzac) sobre manchetes e apurações sérias incendeia no Rio Grande do Sul uma reflexão sobre artimanhas da mídia.
O termo "Burrice Artificial", cunhado pelo diretor numa recente entrevista ao site luso C7nema, brinca com algoritmos e a IA. É esse o papo que ele trava com o Correio da Manhã a seguir, relembrando o tempo de escassez da produção nacional, na Era Collor, antecipando detalhes de seu novo filme, em finalização, chamado "Muito Prazer". Com a palavra... Jorge Furtado:
O que "Mercado de Notícias" te propiciou como aprendizado no trânsito pelas ferramentas documentais, feito três décadas depois de "Ilha das Flores"?
Jorge Furtado: "O Mercado de Notícias" é um filme de que eu me orgulho muito de ter feito, por ter entrevistado grandes jornalistas e por ter trazido o pensamento (em forma de peça) do (dramaturgo) Ben Jonson à tona naquele momento. Engraçado que esse é um documentário sobre fake news, mas não fala nessa expressão, pois ela só surgiu no ano seguinte. Então o filme estava falando das "notícias falsas", que era como a gente chamava essas mentiras até então. Eu percebi, naquele momento de explosão da internet, das redes sociais, que jornalistas profissionais seriam cada vez mais necessários. A batalha dessa turma é uma luta difícil que continua sendo lutada. A luta da boa informação... da informação profissional... contra a mentira é árdua. Agora, com a inteligência artificial mentindo em ritmo astronômico, a gente cada vez mais vai precisar do bom jornalismo. Assim sendo, o filme continua bastante atual.
Agora que "Carlota Joaquina", de Carla Camurati, voltou às telas, 30 anos depois de seu lançamento, a gênese da Retomada voltou à tona e, naquele ano zero dessa reconstrução de nosso cinema, 1995, você esteve em Gramado com "Felicidade É..." e saiu de lá premiado. O que aquele filme representou para o cinema do país, e do Rio Grande do Sul, naquela época?
Aquele foi um ano dificílimo para o cinema brasileiro. O "Felicidade É..." ganhou o prêmio de Melhor Filme Brasileiro no Festival de Gramado, no de Brasília e no de Goiânia, por um motivo muito simples: ele era o único título nacional concorrendo, porque não tinha outro. A gente resolveu, numa cooperativa de curta-metragistas, fazer um filme de episódios. A gente resolveu produzir, do jeito de que dava, para botar em Gramado. Então, foi um filme de resistência.
O que Gramado representou para o filme?
Acho que Gramado representa - e muito - a resistência do cinema brasileiro. Nosso cinema já acabou algumas vezes. Acabou com o Collor; depois, com o Inelegível (Jair Bolsonaro). Apesar disso, assim como o nosso cinema, o Festival de Gramado se reinventa. Ele se refaz, vira latino (referência do diretor ao período de quase 30 anos em que o evento tinha uma competição estrangeira), muda e continua, como o cinema brasileiro continua também. Foi muito importante para nós, naquele momento, resistir e ter um filme. "Felicidade É..." ainda é interessante, é divertido. São bons curtas reunidos.
Nos anos 1980 e na primeira metade dos 1990, o cinema gaúcho esteve na ponta da ebulição estética nacional, tendo em Gramado uma vitrine. O que houve de mais potente na produção do seu estado naquele ano e o que Gramado cumpriu de essencial para essa inflamabilidade de boas ideias da época?
O começo dos anos 1980 foi um momento de ebulição da produção de curtas no Brasil, e Gramado dava espaço para essas produções. Tinha muitos curtas bons. Eu lembro que a associação que reunia os curta-metragistas era a ABD, a Associação Brasileira de Documentaristas, porque quase todos os curtas eram documentários. No começo dos anos oitenta, houve uma virada dessa lógica, e a gente começou a produzir filmes de ficção em curta metragem. Aí teve aquilo que se chamou a Primavera do Curta, em 1986, quando "O Dia Em Que Dorival Encarou a Guarda", "A Espera" e "Ma Che Bambina" dividiram o prêmio de melhor filme em Gramado. A partir dessa divisão do prêmio principal, a gente juntou esses filmes e fez uma mostra de curtas, o que criou uma certa moda. Foi um momento muito rico. Aliás é impossível lembrar desse momento sem lembrar o nome da (produtora) Zita Carvalhosa, nossa grande amiga, que nos deixou esse ano, e que foi fundamental na produção desses curtas e na divulgação do formato.
A Casa de Cinema de Porto Alegre, produtora da qual você faz parte, segue ativa no estado... brilhando fora dele também. Como andam os projetos da empresa hoje e o que esperar(mos) de "Muito Prazer", seu novo longa?
A Casa de Cinema, que está rumando para os 40 anos, continua produzindo muito. A gente continua fazendo cinema e televisão, em Porto Alegre, com uma grande equipe. O recente "Virgínia e Adelaide", que foi dirigido pela Yasmin Thainá e por mim, é um filme que a gente produziu, e está chegando aos streamings agora, depois de 14 semanas nos cinemas. Agora estou acompanhando a montagem do "Muito Prazer", que é um longa de ficção, uma comédia romântica antialgorítmica. É uma comédia que fala dos algoritmos, do ridículo que são os algoritmos quando aplicados à paixão. Quase todos os algoritmos são um problema. O filme deve estar pronto no ano que vem.