A tramitação do chamado PL da Dosimetria transformou-se, em poucos dias, de um debate técnico sobre penas em um dos episódios mais ruidosos da relação entre o governo Luiz Inácio Lula da Silva e sua própria base no Congresso.
A crise ganhou corpo após o líder do governo no Senado, Jaques Wagner (PT-BA), admitir publicamente que não obstruiu a votação do projeto como parte de um entendimento político para viabilizar outras pautas econômicas de interesse do Planalto — versão rechaçada pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), por ministros e por parte da bancada governista.
A proposta, que reduz critérios de aplicação e execução de penas para crimes contra o Estado Democrático de Direito, foi aprovada na noite de quarta-feira (17), pelo plenário do Senado, por 48 votos a 25, com uma abstenção. O texto segue agora para análise do presidente da República, que já antecipou a intenção de vetá-lo.
O estopim
A crise interna no governo ganhou forma após a tramitação acelerada do PL da Dosimetria na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) do Senado, quando pedidos de adiamento e de audiência pública foram rejeitados e o prazo regimental de vista foi reduzido para apenas quatro horas — movimento que viabilizou a votação ainda no mesmo dia.
O episódio provocou reação imediata no plenário. O senador Renan Calheiros (MDB-AL) acusou o governo de tentar acelerar uma matéria sensível em troca da votação de pautas econômicas e afirmou ter se recusado a participar de qualquer acordo nesse sentido. “Eu nunca vi, às vésperas do Natal, um líder do governo querer dar de presente um peru para os golpistas que atentaram contra a democracia”, disse.
Renan também sustentou que a emenda aprovada tinha natureza de mérito — o que exigiria o retorno do texto à Câmara — e criticou a concessão de apenas quatro horas de vista pelo presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA). Renan referia-se à emenda feita por Sergio Moro (União Brasil-PR), que tratava de restringir qualquer benefício de redução de penas aos envolvidos nos atos antidemocráticos.
Foi nesse ambiente de contestação que, já no plenário, Jaques Wagner decidiu se manifestar e afirmou não ver constrangimento na condução do processo. “Não me envergonho do que fiz, estou muito tranquilo na condução da minha liderança e acho que o que a gente fez foi simplesmente colocar em votação aquilo que está para ser votado”, declarou.
Roupa suja
A reação extrapolou o plenário e chegou às redes sociais. Em publicação no X, a ministra das Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann (PT-PR), afirmou que não houve negociação envolvendo o projeto e classificou a condução do tema como equivocada. “A redução das penas dos golpistas é um desrespeito à decisão do STF e um grave retrocesso na legislação que protege a democracia”, escreveu. Em seguida, completou: “A condução desse tema pela liderança do governo no Senado na CCJ foi um erro lamentável”.
A crítica pública escancarou o desalinhamento dentro do governo e provocou resposta imediata de Jaques Wagner, que também recorreu às redes sociais. “Lamentável é nos rendermos ao debate raso e superficial. É despachar divergências de governo por rede social”, afirmou o senador.
Veto
Diante da escalada da crise, Lula decidiu se posicionar publicamente. Durante café da manhã com jornalistas, no Palácio do Planalto, nesta quinta-feira (18), o presidente negou qualquer acordo e confirmou que vetará o projeto.
“Se houve acordo com o governo, eu não fui informado. Então, se o presidente não foi informado, não houve acordo”, afirmou. Lula também disse que não é aceitável discutir redução de penas antes da conclusão dos julgamentos. “Nem terminou o julgamento ainda e já resolvem diminuir a pena. Com todo o respeito que tenho ao Congresso, na hora que chegar na minha mesa, eu vetarei”, declarou.
O presidente ressaltou ainda que o Congresso tem o direito de derrubar o veto, caso queira, reforçando que a disputa institucional deve se prolongar.
Judicialização
Paralelamente ao anúncio de veto presidencial, bancadas que se posicionaram contra o PL da Dosimetria na Câmara dos Deputados ingressaram com mandado de segurança no STF pedindo a suspensão da tramitação da proposta. A ação foi apresentada pelos partidos do PT, PSB, PCdoB e PSOL, sob o argumento de que o processo legislativo no Senado foi marcado por “vícios formais graves”.
Em nota, o líder do PT na Câmara, Lindbergh Farias (PT-RJ), afirmou que uma emenda aprovada na CCJ do Senado foi indevidamente classificada como de redação, apesar de promover alteração substancial de mérito — o que teria evitado o retorno obrigatório do projeto à Câmara e configurado burla ao bicameralismo constitucional.
Segundo a liderança petista, houve ainda supressão indevida do prazo regimental de vista na CCJ, sem regime de urgência e sem justificativa objetiva, restringindo o debate parlamentar e violando prerrogativas das minorias.
Oposição mira anistia
Do lado da oposição, a aprovação foi tratada como uma vitória parcial. O senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) afirmou que o texto não era o ideal, mas representava o possível no atual contexto político. “Pulamos o primeiro degrau”, disse.
Já o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante (PL-RJ), deixou claro que o partido não desistiu de uma anistia ampla. “A luta vai continuar até a gente anistiar todos esses injustiçados”, afirmou, projetando o debate para o próximo ano legislativo.
Bolsonaro
Embora apresentado como um ajuste técnico, o projeto é atravessado pela figura do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). As mudanças podem beneficiar réus como o ex-presidente e militares como Almir Garnier, ex-comandante da Marinha; Paulo Sérgio Nogueira, ex-ministro da Defesa; Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil, e Augusto Heleno, ex-chefe do Gabinete de Segurança Institucional.
Bolsonaro cumpre pena de 27 anos e três meses em uma sala da Superintendência da Polícia Federal, em Brasília. O ministro Alexandre de Moraes (STF) autorizou sessões diárias de fisioterapia respiratória e motora, o recebimento de cartas e encomendas, visitas regulares da ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e uma entrevista ao portal Metrópoles, marcada para 23 de dezembro.
Na noite da aprovação do projeto, o senador Flávio Bolsonaro comemorou o resultado como “o que era possível” no atual contexto. Já o líder do PL na Câmara, Sóstenes Cavalcante, afirmou que a aprovação é apenas o primeiro passo e que a oposição seguirá defendendo uma “anistia ampla, geral e irrestrita.”
Desgaste
Para especialistas ouvidos pela reportagem, o anúncio de veto presidencial não encerra a controvérsia em torno do PL da Dosimetria e, ao contrário, tende a deslocar o embate para 2026, com forte judicialização no Supremo Tribunal Federal (STF).
O advogado e analista político Melillo Dinis avalia que, caso o veto seja total, o texto não produz efeitos imediatos, mas permanece vivo no Congresso. “Com o veto presidencial, a legislação não entra em vigor. Teria que aguardar a derrubada do veto pelo Congresso Nacional, o que, no cenário atual, é uma tendência”, afirma.
Segundo Dinis, mesmo antes de eventual derrubada do veto, o projeto já reúne elementos suficientes para ser questionado no STF. Ele aponta vícios formais no processo legislativo, especialmente na forma como o Senado tratou mudanças substanciais como se fossem de redação. “Há razões formais, como a classificação equivocada de emenda de mérito, que deveria devolver o texto à Câmara, e há razões de conteúdo, como a violação do princípio da igualdade”, diz.
Na avaliação do analista, o texto aprovado abre espaço para interferência indevida do Legislativo na individualização das penas, o que tende a atrair o controle do Judiciário. “O Direito Penal não aceita medidas exclusivas para um tipo específico de crime, como o PL acabou por fazer. Qualquer que seja o desfecho entre Congresso e Executivo, isso será resolvido no Supremo”, afirma.
Dinis também ressalta que, caso a lei venha a entrar em vigor no futuro, seus efeitos alcançariam condenações já em curso, inclusive aquelas relacionadas aos atos de 8 de janeiro. “A Constituição garante a retroatividade da lei penal mais benéfica. Isso significa que, se a norma reduzir penas, ela alcança inclusive casos já julgados, mesmo com coisa julgada”, explica.
Do ponto de vista político, o especialista vê a votação como fruto de uma escolha estratégica do governo no Senado. “O acordo foi feito dessa forma para aprovar a pauta econômica do governo, que passou de forma expedita para ampliar a arrecadação federal”, afirma. Para ele, o desgaste público decorre da própria desorganização interna. “Atrito é a marca da articulação do governo. Eles não se entendem e, enquanto isso, a caravana da oposição passa.”
Na mesma linha, o doutor em Direito Constitucional Guilherme Barcelos, sócio do Barcelos Alarcon Advogados, avalia que o episódio revelou uma desarticulação profunda dentro do próprio governo. “Harmonia não há nem internamente. Houve parlamentares do partido do governo que votaram a favor do projeto e, ao mesmo tempo, integrantes do governo anunciam que vão ao STF questionar a lei. Isso não faz muito sentido”, afirma.
Para Barcelos, o veto presidencial não reverte o desgaste já produzido. “O desgaste foi do governo, a partir dos seus próceres no Parlamento e na articulação política. O veto é apenas o exercício de uma prerrogativa constitucional do presidente”, diz.
Na leitura do constitucionalista, o ônus político do episódio recai majoritariamente sobre o Planalto. “Agora, o ônus é todo do governo. O Congresso pode até derrubar o veto no próximo ano, mas a crise política já está posta”, conclui.