Nos corredores do Senado, ficou a suspeita de que o governo fez certo “corpo mole” na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ). Chegou-se a falar em acordo para votar outros temas econômicos de interesse. A ministra de Relações Institucionais, Gleisi Hoffmann, negou o acordo. Mas ele acabou admitido pelo líder do governo no Senado, Jaques Wagner.
Após mais de seis horas de reunião na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), o Senado aprovou, nesta quarta-feira (17), com 48 votos favoráveis, 25 contrários e uma abstenção, o chamado PL da Dosimetria (PL 2.162/2023), projeto que altera regras de aplicação e execução de penas para crimes contra o Estado Democrático de Direito. Relatada pelo senador Esperidião Amin (PP-SC), na CCJ a proposta tinha sido antes aprovada por 17 votos a 7.
O texto abre caminho para a redução de penas de condenados pelos atos antidemocráticos de 8 de janeiro de 2023, incluindo manifestantes que não exerceram papel de liderança ou financiamento. Apesar do avanço na CCJ, o projeto permanece no centro de uma disputa política e institucional.
O que muda
O projeto prevê que, nos crimes de golpe de Estado e de abolição violenta do Estado Democrático de Direito praticados em contexto de multidão, a pena possa ser reduzida de um terço a dois terços, desde que o réu não tenha financiado nem liderado os atos. Também estabelece novas regras de progressão de regime, permitindo a mudança para regimes mais brandos após o cumprimento de 16,6% da pena, desde que haja bom comportamento.
Além disso, o texto veda a soma automática de penas quando os crimes forem cometidos no mesmo contexto fático. Nesses casos, passa a prevalecer a pena mais grave, com acréscimo proporcional, substituindo a cumulação aritmética aplicada pelo Supremo Tribunal Federal (STF) nas condenações relacionadas ao 8 de janeiro. Esse é o ponto que mais poderá beneficiar o ex-presidente Jair Bolsonaro. Ele deixaria de ser condenado por golpe de Estado e abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Teria somente a pena maior, que a do golpe de Estado. A avaliação é que, com a nova pena e os regimes de progressão, Bolsonaro fique cerca de dois anos e alguns meses em regime fechado.
Emenda de Moro
Um dos principais pontos da tramitação foi a emenda apresentada pelo senador Sergio Moro (União-PR), ex-juiz federal e ex-ministro da Justiça, que ajusta a redação do artigo 112 da Lei de Execução Penal. O objetivo, segundo Moro, foi impedir que a redução de pena alcançasse crimes comuns não relacionados aos atos antidemocráticos.
Após a aprovação do texto, Moro afirmou esperar que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) não vete a proposta. Segundo ele, o Senado corrigiu uma falha do texto aprovado pela Câmara dos Deputados. “Havia um equívoco na redação que acabava beneficiando outros crimes. O Senado corrigiu isso e acolheu a minha emenda”, disse.
Para o senador do União Brasil do Paraná, o projeto “coloca o texto em seu leito próprio”, ao limitar os efeitos da redução de pena aos manifestantes do 8 de janeiro, ao ex-presidente Jair Bolsonaro e a militares condenados. Moro afirmou ainda que, embora siga defendendo uma anistia ampla, o PL da Dosimetria foi “o possível neste momento”.
Veto
Do lado do governo, o líder no Congresso Nacional, senador Randolfe Rodrigues (PT-AP), foi enfático ao afirmar que o projeto está “fadado ao veto”. Segundo o parlamentar, a base governista trabalhará no Plenário para impedir a aprovação da proposta.
Randolfe classificou o texto como uma “anistia nutela”, numa referência ao fato de não alcançar o perdão amplo que a oposição defende. “É uma tentativa de superar a anistia raiz que eles queriam e não conseguiram”, afirmou, ao dizer que o projeto reforça uma “triste tradição de anistia golpista” no país.
Apesar de presidir a CCJ, o senador Otto Alencar (PSD-BA), também se posicionou contra o mérito da proposta. Ele não votou por ocupar a presidência da comissão, mas reiterou que considera a emenda de Sergio Moro uma alteração de conteúdo, e não apenas de redação — o que, em sua avaliação, justificaria o retorno do texto à Câmara.
“Rigor excessivo”
Relator do projeto, o senador Esperidião Amin (PP-SC), rebateu a leitura de que o PL busca reparar injustiças. Segundo ele, o objetivo central é reduzir o rigor excessivo das penas aplicadas. “Não vai na premissa de reparar injustiça. O mérito é reduzir a mão pesada das penas”, afirmou.
A tramitação do projeto ocorre em meio à resistência da opinião pública. Pesquisa Genial/Quaest, realizada entre 11 e 14 de dezembro, mostra que 47% dos brasileiros são contrários à redução das penas, enquanto 24% apoiam o texto aprovado pela Câmara e 19% defendem reduções ainda maiores. Outros 10% não souberam opinar.
O levantamento também indica que 58% dos entrevistados acreditam que o PL da Dosimetria foi aprovado para reduzir especificamente a pena de Jair Bolsonaro, enquanto 30% entendem que a proposta beneficia todos os condenados — percepção que varia de acordo com o posicionamento político do eleitorado.
Leitura política
Para o cientista político Leandro Gabiati, especialista em ciência política do Ibmec Brasília, o avanço do PL da Dosimetria no Congresso tem motivação predominantemente política, ainda que exista debate jurídico sobre a proporcionalidade das penas aplicadas.
“O movimento é estritamente político. Ainda que possam ser questionadas as penas elevadas, o movimento no Congresso foi político”, afirma.
Segundo Gabiati, apesar do discurso de que o projeto buscaria beneficiar outros condenados pelos atos de 8 de janeiro, o principal motor da proposta sempre esteve associado ao ex-presidente Jair Bolsonaro (PL). “Ainda que houvesse um interesse pelos outros condenados, o motor político do PL foi a diminuição da pena do ex-presidente Bolsonaro”, avalia.
O especialista observa que, no caso dos militares envolvidos nos atos, o tema perdeu centralidade após as condenações. “A questão dos militares parece superada depois das condenações, tanto para civis quanto para militares. O foco neste projeto de lei passou por favorecer o ex-presidente Bolsonaro, líder do movimento conservador no Brasil”, diz.
Gabiati também afasta qualquer leitura de que o projeto represente uma tentativa de pacificação nacional nos moldes da anistia concedida no período pós-ditadura. “Não houve espaço para uma pacificação na linha do que aconteceu na anistia no pós-ditadura, até porque os casos são bastante diferentes”, afirma.
Na avaliação do cientista político, o que se viu foi uma articulação da oposição no Congresso, sem base suficiente para avançar em um perdão político amplo. “O que houve foi um movimento articulado pela oposição no Congresso, sem ter maior margem de acordo para avançar sobre um perdão político”, pontua.
Apesar das divergências e da resistência da base governista, Gabiati avalia que o Senado tende a aprovar o texto. Para ele, o objetivo político é retirar o tema da agenda antes do ano eleitoral. “O Senado tende a aprovar a proposta, apesar das divergências presentes. Politicamente, o que se pretende é encerrar o assunto em discussão — anistia ou redução de penas —, superar essa pauta e iniciar 2026, ano eleitoral, sem essa pendência colocada pela oposição”, conclui.