A relação de autoridades públicas com investigados em casos sob sua esfera de atuação reacendeu o debate sobre conflito de interesses e fragilidades nos mecanismos de integridade do Estado brasileiro.
Dois episódios recentes — envolvendo o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli e o presidente do Senado, Davi Alcolumbre (União Brasil-AP) — exemplificam como aproximações pessoais, viagens e recebimento de benefícios podem comprometer a confiança da sociedade no Judiciário e no Legislativo. Especialistas ouvidos pelo Correio da Manhã apontam riscos institucionais e defendem maior rigor na transparência.
Voo em jatinho
Relator da investigação sobre fraudes financeiras do Banco Master, o ministro Dias Toffoli viajou em um jatinho particular ao lado de advogados ligados ao caso. A informação foi revelada pelo jornal O Globo. O ministro embarcou para Lima no dia 28 de novembro para assistir à final da Taça Libertadores. No mesmo voo estavam Luiz Oswaldo Pastore, empresário que forneceu a aeronave, e Augusto Arruda Botelho, ex-secretário nacional de Justiça e advogado de Luiz Antonio Bull — diretor de Compliance do Master e preso na operação que levou Daniel Vorcaro, presidente do banco, à cadeia. O ex-deputado Aldo Rebelo também estava na aeronave.
Dois dias após o retorno a Brasília, Toffoli impôs sigilo máximo ao processo e concentrou em seu gabinete todos os desdobramentos da investigação. A pessoas próximas, o ministro afirmou que é amigo de Pastore há anos e que não mantém relação de proximidade com Botelho. O Correio da Manhã entrou em contato com a assessoria do STF questionando, mas não obteve retorno.
Para o mestre em Ciência Política Felipe Rodrigues, situações como essa reacendem o problema histórico do patrimonialismo. “Quando há proximidade com investigados e benefícios privados, a independência fica comprometida. A legitimidade das decisões passa a ser vista com suspeita”, afirma. Segundo ele, no caso do Judiciário, o dano é ainda maior, pois a única fonte de legitimidade de um magistrado é sua autoridade moral e técnica.
Mounjaro de Alcolumbre
Outro episódio envolve o presidente do Senado, Davi Alcolumbre. Mensagens reveladas pelo UOL mostram que, em agosto de 2024, ele recebeu canetas de Mounjaro — medicamento para emagrecimento então restrito e naquele momento vendido somente no mercado paralelo — enviadas por Roberto Rodrigues, conhecido como Beto Louco.
A substância só seria liberada pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) em junho de 2025. A PF aponta Beto Louco como líder de um esquema de fraudes em combustíveis e lavagem de dinheiro, investigando ainda possíveis vínculos com postos ligados ao PCC. Ele está foragido e é alvo das operações Carbono Oculto, Tank e Quasar. A assessoria do presidente do Senado não respondeu aos questionamentos desta matéria.
Para o professor de direito Rafael Durand, receber um benefício caro e de acesso restrito de um investigado coloca a autoridade em “zona de incompatibilidade ética”.
“Mesmo sem prova de contrapartida, o risco institucional é objetivo. Presentes de investigados para quem define pautas legislativas fragilizam os freios e contrapesos”, avalia.
Rodrigues reforça que casos assim alimentam o cinismo cívico. “A sociedade passa a enxergar um sistema promíscuo, em que autoridades operam com regras próprias. Isso corrói a confiança e abre espaço para discursos antidemocráticos.”
Para os especialistas, os episódios envolvendo Dias Toffoli e Davi Alcolumbre expõem não apenas falhas pontuais, mas um déficit persistente de integridade institucional no país.
Felipe Rodrigues avalia que o Brasil vive um problema estrutural, ainda baseado na dependência da ética individual. Ele afirma que, enquanto a cultura do patrimonialismo não for superada, a aparência de favorecimento já basta para contaminar a legitimidade das decisões e aprofundar o cinismo cívico.
Rafael Durand observa que os mecanismos de controle atuais fracassam até no básico. “Se só descobrimos viagens em jatos privados e presentes de investigados por causa de reportagens, é porque transparência e moralidade não estão sendo tratadas como limites reais à vida social das autoridades”, diz. Na avaliação dele, apenas medidas vinculantes, como impedimento automático, divulgação proativa de agendas e sanções efetivas, podem evitar que essas ligações perigosas continuem corroendo a confiança no Judiciário e no Legislativo.