Por: Gabriela Gallo

Negociação com o governo produz recuos no PL Antifacção

Derrite disse que fará "texto duro", mas com mudanças que foram negociadas | Foto: Marina Ramos/Câmara dos Deputados

A Câmara dos Deputados deve votar, ainda nesta semana, o projeto de lei que altera o Código Penal para reforçar o combate contra organizações criminosas no país, batizado de PL Antifacção (PL 5585/2025). O substitutivo do relator do projeto, deputado federal Guilherme Derrite (PP-SP), cria o chamado “Marco Legal do Combate ao Crime Organizado”. Inicialmente, a expectativa era o que texto, de autoria do governo federal, fosse votado na Câmara dos Deputados ainda nesta terça-feira (11). Mas, como adiantou o Correio Político, o governo pediria o adiamento para negociar pontos. E essa negociação ocorreu.

Em entrevista coletiva no final da tarde desta terça-feira, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), declarou que a versão final do texto será finalizada até esta quarta-feira (12). Com isso, ele espera conseguir colocar o projeto em votação ainda hoje.

A coletiva de imprensa ocorreu após a reunião de líderes. Desde segunda-feira, o governo já manifestava reação á decisão de Motta de escolher Derrite como relator. E com pontos do seu relatório. No trabalho de negociação do texto, Motta se reuniu com o ministro de Justiça e Segurança Pública, Ricardo Lewandowski. Na segunda-feira (10), ele já tinha se reunido com o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, que é o relator da ação de descumprimento de preceito fundamental (ADPF) das Favelas – recurso que discute os limites de atuações policias em favelas e comunidades marginalizadas do país. As reuniões visam garantir que o texto que for discutido e aprovado no Congresso não seja eventualmente barrado no STF por ter trechos inconstitucionais.

O projeto

O projeto Antifacção aumenta as penas pela participação em organização criminosa ou milícia para 20 a 40 anos de prisão, prevê apreensão prévia de bens do investigado em certas circunstâncias, aperfeiçoa o acesso a dados de investigados na internet, dentre outras medidas. Além disso, o texto determina que a pena deverá ser cumprida em até 70% do tempo em regime fechado (antes era até 40% da pena).

A medida também cria o Banco Nacional de Membros de Organização Criminosa, que visa “identificar, registrar e manter base de dados unificada sobre pessoas físicas e jurídicas integrantes, colaboradoras ou financiadoras de organizações criminosas, grupos paramilitares ou milícias privadas, bem como suas ramificações estruturais, operacionais e financeiras”. O banco precisará ser regulamentado por Ato do Poder Executivo federal em até 180 dias.

Ao Correio da Manhã, o professor de Segurança Pública do Ibmec Brasília Fagner Dias avalia o projeto como positivo. “O crime organizado hoje funciona como uma empresa, com estrutura, hierarquia e fluxo financeiro. Endurecer as penas e, principalmente, atacar o patrimônio dessas facções é fundamental. O texto dá mais instrumentos para rastrear e bloquear bens, inclusive digitais, e isso atinge o ponto mais sensível dessas organizações: o dinheiro”, destacou o especialista em segurança pública.

Por outro lado, o advogado criminalista mestre em Direito Processual pela PUC Minas Thúlio Guilherme Nogueira considera que as mudanças não trarão mudanças efetivas para a segurança pública.

“É um projeto de efeito retórico, não prático. Aumentar penas, mudar regimes ou rotular o crime organizado como ‘terrorismo’ é discurso, não política pública. Já ficou provado, desde 2019, que endurecer a lei não reduz violência nem desarticula facções. Trata-se de uma pauta eleitoral travestida de solução técnica. O país não precisa de mais repressão simbólica, e sim de investigação, inteligência e coordenação real entre as forças de segurança”, reiterou Thúlio Nogueira para a reportagem.

Terrorismo

Us dos pontos considerados polêmicos do texto se refere ao trecho que equipara organizações criminosas ao crime de terrorismo. Essa modificação seria feita por Derrite. Contudo, na entrevista coletiva, o deputado desistiu do ponto para reduzir a resistência de parlamentares, mas reforçou o motivo da equiparação.

“Como a Lei Antiterrorismo é de competência da Justiça Federal, ou seja, da Polícia Federal de realizar as investigações, eu tive que colocar nesses novos tipos penais praticados por membros de organizações criminosas uma ressalva que mantinha essa competência da Justiça estadual, polícias estaduais e Ministérios Públicos estaduais na figura dos Gaecos [Grupos de Atuaçao Especial contra o Crime Organizado]”, justificou o relator.

Para a reportagem, antes mesmo do anúncio, o pós-doutor em ciências jurídicas pela Universidade de La Matanza (província da Argentina) Antonio Gonçalves avaliara que a proposta era um erro. “Há legislação clara definindo o que vem a ser organização terrorista e quais as características e nenhuma delas é minimamente parecida com as características das facções criminosas, portanto, se equiparar via lei pode ensejar problemas práticos, logísticos e inclusive impactar em investigações”, afirmou Gonçalves ao Correio.

O mestre em direito processual Thúlio Nogueira explicou que, enquanto o crime organizado “tem finalidade econômica e estrutura voltada ao lucro ilícito”, o conceito de terrorismo na Constituição brasileira e demais tratados internacionais “exige motivação política, ideológica ou religiosa”. “Misturar essas categorias desvirtua o conceito de terrorismo, viola o princípio da taxatividade penal e gera insegurança jurídica”, afirmou o criminalista.

“Criar tipos sobrepostos é redundante e contraproducente, dilui esforços institucionais e dispersa recursos. Além disso, a ampliação do conceito de terrorismo pode causar constrangimentos diplomáticos e econômicos, pois obriga o país a acionar compromissos internacionais voltados ao combate ao terror, expondo o Brasil a ingerências externas e a sanções financeiras”, completou Nogueira.

Polícia Federal

Outro ponto polêmico no relatório se refere às competências da Polícia Federal (PF) no combate ao crime organizado. O relator determinou que a PF pode atuar por iniciativa própria em estados em que haja o crime organizado, desde que os fatos investigados envolvam matérias de sua competência constitucional ou legal. Contudo, a PF terá que avisar ao estado em que haverá a investigação. Na avaliação de governistas, a medida poderia gerar um eventual vazamento de informações e enfraquecer a atuação policial. Por meio de nota divulgada nesta segunda-feira (10) a própria Polícia Federal manifestou preocupação de enfraquecimento da corporação com as medidas.

“A execução de operações pela Polícia Federal dependeria de solicitação do governo estadual da região investigada, o que constitui um risco real de enfraquecimento no combate ao crime organizado. Essa alteração, somada à supressão de competências da Polícia Federal, compromete o alcance e os resultados das investigações, representando um verdadeiro retrocesso no enfrentamento aos crimes praticados por organizações criminosas, como corrupção, tráfico de drogas, desvios de recursos públicos, tráfico de pessoas, entre outros”, reforçou a PF, por meio de nota.

Contudo, Derrite defendeu que o suposto enfraquecimento da PF foi uma má interpretação do texto. Ele ainda reiterou que o texto não tira poder da PF, mas aumenta o poder de atuação das policias estaudais. “Vamos manter um texto duro, disso eu não abro mão, o marco legal do combate ao crime organizado”, reforçou o relator. “Acabando com esse equívoco — e quero crer que tenha sido um equívoco — de que há um enfraquecimento. Muito pelo contrário: estimula-se a integração das forças policiais”, defendeu o parlamentar.

Para o especialista em segurança pública, o que mudará é o modelo de cooperação entre as forças de segurança. “A Polícia Federal tem expertise em investigações complexas, interestaduais e até internacionais, como lavagem de dinheiro e tráfico de armas. Mas é importante lembrar que as facções também dominam territórios, criam laços dentro das comunidades e conhecem o terreno melhor do que ninguém. Por isso, o combate não pode ser apenas federal, precisa de integração real com as polícias estaduais, que são quem vive o problema no dia a dia”, declarou Fagner Dias.

“A PF continua podendo agir por conta própria, mas deve manter diálogo com as polícias estaduais, para evitar sobreposição e garantir integração. O cuidado aqui é que essa comunicação não vire um entrave nem um risco de vazamento de informações sensíveis”, defendeu Dias.