Em declaração que reacende o debate sobre soberania jurídica e política externa, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Flávio Dino esclareceu nesta terça-feira (19) que, embora determinações oriundas de governos ou tribunais estrangeiros não tenham mais validade automática no Brasil, a exceção são as cortes internacionais das quais o país é signatário, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Tribunais estrangeiros compreendem exclusivamente órgãos do Poder Judiciário de outros Estados, enquanto tribunais internacionais são órgãos de caráter supranacional”, destacou o juiz. O posicionamento, divulgado por meio de novo despacho, esclarece uma decisão tomada na véspera, na qual o magistrado vedou a aplicação imediata de leis, ordens judiciais e atos administrativos estrangeiros sem homologação prévia do Judiciário brasileiro. Embora sua decisão se referisse a uma ação a respeito da barragem de Mariana, indiretamente ela beneficia o ministro Alexandre de Moraes, que recebeu sanções do governo dos Estados Unidos com base na Lei Magnitsky.
Dino justificou a medida como uma forma de proteção diante do que classificou como “imposições indevidas” no território nacional. “Seria inviável a prática de atos jurídicos no Brasil se — a qualquer momento — uma lei ou decisão judicial estrangeira, emanada de algum país dentre as centenas existentes, pudesse ser imposta no território pátrio”, diz o magistrado em trecho do documento.
Decisão
A determinação tem efeitos imediatos sobre o sistema financeiro nacional. O ministro determinou que instituições como o Banco Central, a Federação Brasileira de Bancos (Febraban) e as seguradoras sejam comunicadas e se abstenham de acatar ordens externas que envolvam pessoas ou ativos localizados no Brasil.
A origem do caso se deu por meio de uma Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 1178, apresentada pelo Instituto Brasileiro de Mineração (Ibram), que contestou a tentativa de municípios brasileiros de acionar mineradoras em tribunais estrangeiros — em especial no Reino Unido — por danos decorrentes dos desastres de Mariana (2015) e Brumadinho (2019). Dino avaliou como ilegítimas tais investidas jurídicas fora do país e proibiu que estados e municípios brasileiros iniciem ações em cortes internacionais que não contem com respaldo de tratados ou do Judiciário nacional. O ministro também anulou a liminar britânica que buscava interferir nas decisões do STF, classificando-a como uma tentativa de pressão institucional.
Moraes
Embora sem menções explícitas, a medida ocorre semanas após o ministro Alexandre de Moraes, também do STF, ter sido sancionado pelo governo do presidente dos Estados Unidos, Donald Trump (Republicano), com base na Lei Magnitsky — mecanismo legal norte-americano que permite punir indivíduos acusados de graves violações de direitos humanos ou corrupção, restringindo acessos com a revogação de vistos, proibição de entrada nos EUA e restrições a transações com pessoas físicas ou jurídicas sediadas no país. Moraes foi acusado de restringir liberdades e perseguir opositores, entre eles o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que atualmente é réu no STF por suposta tentativa de golpe de Estado após as eleições de 2022
Horas após a publicação da decisão, o Departamento de Estado dos EUA voltou a criticar Alexandre de Moraes, chamando-o de “tóxico” para empresas que buscam acessar o mercado norte-americano. Em nota publicada na rede social X (antigo Twitter), o órgão da Casa Branca alertou que “nenhum tribunal estrangeiro pode invalidar as sanções dos Estados Unidos — ou poupar alguém das consequências graves de violá-las". A tensão entre o STF e o governo dos EUA foi intensificada também após entrevista de Moraes ao The Washington Post, divulgada na última segunda-feira (18), na qual o ministro reiterou que “não recuará nem um milímetro” na condução das ações contra a tentativa de golpe atribuída a Bolsonaro e aliados.
“Cilada econômica”
Especialistas consultados pelo Correio da Manhã explicam, porém, que as novas determinações mantêm as empresas — principalmente as brasileiras — em um impasse delicado. Segundo avaliação do professor de Direito Internacional Manuel Furriela, o parecer de Flávio Dino reitera o princípio estabelecido na legislação brasileira de que leis, atos ou decisões emanadas de outros estados ou países somente terão validade no Brasil após o processo de homologação, sujeito às limitações inerentes ao sistema jurídico brasileiro, “como a ordem pública, a soberania nacional e os bons costumes”.
“Mediante uma interpretação extensiva, essas mesmas empresas americanas poderiam ser compelidas a aplicar as referidas decisões também no Brasil. Contudo, com a decisão do STF, fica claro que essas empresas devem seguir as normas brasileiras e não estão obrigadas a aplicar as sanções estrangeiras dentro do território nacional”.
Ainda assim, Furriela destaca que persiste a questão de como essas empresas lidarão com as possíveis penalidades que podem sofrer nos Estados Unidos por não aplicarem as decisões sancionatórias em outros países, incluindo o Brasil. “Apesar da clareza da decisão, as empresas continuam diante de incertezas, especialmente em relação à interpretação da aplicabilidade internacional das sanções”, afirmou o internacionalista.
Para o professor de Direito Constitucional do Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais (Ibmec), Clever Vasconcelos, embora a medida possua plena aplicabilidade do ponto de vista jurídico, coloca as instituições financeiras em uma “cilada econômica”, que deverão medir os riscos e avaliar a melhor conduta a ser tomada.
“Se acatarem a decisão do Supremo, poderão incorrer em sanções econômicas expressivas. Portanto, é crucial que mensurem o impacto financeiro de suas ações: arcar com as penalidades internas ou enfrentar as sanções da jurisdição norte-americana, onde a lei tem plena efetividade”, explicou Vasconcelos à reportagem.