Por: Mayariane Castro

Marielle, a ópera

Marielle Franco é homenageada. Ópera que é tributo à resistência da vereadora chega aos palcos em Ceilândia | Foto: Divulgação

Na década de 1980, quando o Brasil inteiro se mobilizava na campanha por eleições diretas para presidente da República, o maestro Jorge Antunes tornou-se conhecido por compor a Sinfonia das Buzinas, uma música para orquestras e buzinas de automóveis. Era uma celebração à forma como Brasília, que estava sob Estado de Emergência, encontrou para fazer sua manifestação. Proibida de fazer comícios, a cidade usava a buzina dos automóveis para protestar.

Mais de 40 anos depois, o maestro Jorge Antunes volta a reforçar a verve política da sua obra. Sua ópera Marielle será apresentada de 25 a 27 de julho no Teatro SESC Newton Rossi, em Ceilândia, no Distrito Federal. Com entrada gratuita, a montagem propõe um tributo musical à trajetória política e ao assassinato da vereadora Marielle Franco (1979–2018), dividida em quatro atos e uma abertura orquestral.

O espetáculo é conduzido por 19 músicos da orquestra ARS Hodierna e um coro de 12 vozes, com regência do maestro Jorge Lisbòa Antunes. O libreto foi construído com base em discursos, entrevistas e declarações da própria vereadora, abordando temas como racismo estrutural, violência de Estado, direitos LGBTQIAPN+ e luta por justiça nas periferias.

A montagem tem como cenário principal a periferia carioca e destaca episódios centrais da vida da vereadora, como sua atuação na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, a relação com sua companheira Mônica, e o assassinato que se tornou símbolo internacional de luta contra a violência política.

O primeiro ato, com cerca de 43 minutos, apresenta uma favela dividida entre barracos e uma sala de aula comunitária. Relatos de vítimas de violência policial e debates sobre educação como ferramenta de resistência social compõem a narrativa. A personagem Marielle, grávida, critica a opressão estrutural. O professor Alcimar introduz conceitos de Física com metáforas sociais.
Resistência

No segundo ato, ambientado em um apartamento na Tijuca, Marielle e Mônica trocam alianças. O espaço é decorado com símbolos de resistência LGBTQIA+ e abriga reuniões para organização de campanha eleitoral. Um personagem mudo, Rui, realiza uma performance de mímica sobre a repressão na ditadura militar. Interferências homofóbicas na TV interrompem a cena.

O terceiro ato se passa simultaneamente em um teatro de sombras e na Assembleia Legislativa. Marielle denuncia a intervenção militar no Rio de Janeiro e confronta parlamentares conservadores. Enquanto isso, um duo de funk aborda machismo e resistência nos morros. As ações no palco refletem as tensões entre institucionalidade e arte de rua.

No quarto e último ato, ocorrem cenas em um sarau na Casa das Pretas e no apartamento da protagonista. Poesias de Luiz Gama são recitadas, e imagens do assassinato de Marielle são projetadas em uma sequência simbólica. O encerramento destaca a continuidade da luta por justiça, com personagens prometendo manter vivo seu legado. O coro finaliza com o lema: “Não conseguirão matar a primavera”, seguido por uma voz eletrônica que diz: “Estamos de olho; à espreita!”.

Ceilândia

A escolha de Ceilândia como local de estreia tem relação direta com o perfil da homenageada. Assim como Marielle, nascida no Complexo da Maré (RJ), Ceilândia é um território marcado por resistência periférica e mobilização social. O espetáculo busca ampliar o acesso à ópera e dialogar com os desafios enfrentados por comunidades marginalizadas do Distrito Federal.

O projeto foi financiado pelo Fundo de Apoio à Cultura do DF (FAC-DF) e conta com cenografia de Maria Carmen e direção cênica de Chico Expedito. O elenco é formado por nomes como Aida Kellen (Marielle) e Clara Figueiroa (Mônica). A obra integra o ciclo de óperas políticas do compositor Jorge Antunes.

Antunes, nascido em 1942 no Rio de Janeiro, é reconhecido por sua atuação na música eletroacústica e pelo engajamento político. Formado em Física e Música, fundou o Estúdio de Pesquisas Cromo-Musicais em 1961 e compôs a primeira obra brasileira com sons exclusivamente eletrônicos, “Valsa Sideral” (1962). Durante a ditadura militar, criou obras como a “Sinfonia das Diretas” (1984), que utilizava buzinas reais em apoio ao movimento pelas eleições diretas.

A ópera Marielle é parte do ciclo “Hertory”, termo criado por Antunes para destacar mulheres cuja trajetória foi historicamente apagada. Em 2019, o compositor estreou “Olga”, sobre a militante comunista Olga Benário, e planeja futuras montagens dedicadas a Rosa Luxemburgo e Zuzu Angel.

A proposta artística se vale da fusão de gêneros musicais e recursos audiovisuais para narrar a trajetória da vereadora assassinada em 14 de março de 2018. A produção utiliza elementos do funk carioca, canto lírico, sons eletroacústicos pré-gravados e técnicas de teatro visual.

O sarau do último ato apresenta poemas, música e performances que articulam dor e resistência. A narrativa propõe que a morte de Marielle não foi o fim de sua atuação política, mas o início de uma nova etapa de mobilização.

Segundo os organizadores, a montagem pretende contribuir para a preservação da memória de Marielle Franco e provocar reflexões sobre violência política, desigualdades sociais e o papel da arte na transformação social. O espetáculo também busca ampliar o debate sobre a presença de mulheres negras, LGBTQIAPN+ e periféricas na política institucional e cultural do país.