Por Leandra Lima
"Terra é território coletivo, condição de vida, de cultura e autonomia". Esse conceito abriu a audiência pública, realizada na terça-feira (5), na Câmara Municipal, através do mandato da vereadora Júlia Casamasso (Psol), que tratou da titulação do Quilombo da Tapera, única comunidade remanescente da cidade de Petrópolis, que existe na região há mais de 100 anos. Na sessão estiveram presentes representantes do Tapera, da Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro (ACQUILERJ), sociedade civil, ICMBio, Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (INCRA) e a parlamentar Professora Lívia (PCdoB). Além das partes, o Executivo municipal foi convidado para integrar as discussões, que também visavam melhorias e acesso aos direitos básicos, como transporte para a comunidade. No entanto, apesar de formalmente convidados, não compareceram à agenda.
A ação repercutiu de forma negativa, e a ACQUILERJ repudiou o fato, considerando desrespeito institucional e invisibilização da luta quilombola por direitos constitucionais. "Petrópolis, conhecida historicamente como 'Cidade Imperial', foi construída com a força e o sangue de pessoas negras escravizadas. Negar-se a dialogar com descendentes diretos dessas pessoas, que hoje reivindicam o direito à terra e à dignidade, é perpetuar uma estrutura de racismo institucional e exclusão histórica", trecho da nota.
A "Cidade de Pedro" foi planejada em cima de um sistema de exclusão que ainda hoje ressalta o berço de um Império forjado para poucos, inviabilizando os marcos da população negra, da classe trabalhadora e agricultora, apagando toda herança e memórias daqueles que participaram da construção de cada etapa e lutaram pela permanência como indivíduos na cidade. Nesse contexto, a audiência foi considerada um marco histórico pela liderança do Tapera, Denise Barbosa, que reforçou que a titulação é importante para a garantia do direito à terra, ao respeito ao vínculo com a cultura e ancestralidade.
O quilombo, que nasceu em 1847, quando a cidade tinha apenas quatro anos, surgiu em meio à luta dos escravizados alforriados que viviam na fazenda Santo Antônio. Dona Sebastiana Augusta da Silva Correia foi a matriarca fundadora do quilombo, viveu 120 anos, era rezadeira e conhecedora de ervas medicinais.
Resguardar a memória
Resguardar a memória, os saberes e o respeito ao meio ambiente, além da garantia dos direitos sociais básicos, é a bandeira levantada pela parlamentar Júlia Casamasso ao justificar que a audiência vai muito além de um debate jurídico ou técnico. "É uma ação que revela um direito fundamental de uma dívida histórica e uma urgência coletiva. Garantir que o quilombo do Tapera tenha o território reconhecido, protegido e titulado. Falar de titulação é falar da permanência na terra com dignidade, enfrentar o racismo estrutural que se expressa na desigualdade fundiária, na omissão do Estado e na invisibilização dos saberes", ressaltou.
Júlia e a Professora Lívia expressam que o caso do Tapera revela a lentidão e os entraves do Estado, mas escancaram a contribuição coletiva. "Nesse cenário nenhum projeto de cidade será legitimado enquanto seguir expulsando os povos e apagando as memórias", indagou Júlia.
Enquanto isso, Lívia trouxe ao debate o racismo institucional sofrido pela comunidade, enfatizando a fala do juiz responsável por um dos trâmites da garantia da terra: "A decisão do juiz não considerou a potência do quilombo, pois usou termo ultrapassado para caracterizar a forma de organização, tachando como uma organização de pessoas fugidas e refugiadas", disse.
Denise Barbosa reforça a potência da região, que fica no Vale do Cuiabá, em Itaipava, depois de um "condomínio luxuoso" de casas. "Resistimos desde 1847, a todo pagamento histórico. A titulação é importante para todos os territórios quilombolas que são afetados pelas especulações imobiliárias", reforçou.
Processo regulatório
O Tapera iniciou o processo de reconhecimento em 2013. Durante anos ocorreram movimentações junto ao INCRA, que é o responsável pela titulação. Em 2024, foi publicado no Diário Oficial da União o Relatório Técnico de Identificação e Delimitação (RTID) das terras. Um documento que reúne estudos técnicos e informações históricas, antropológicas, cartográficas, fundiárias, agronômicas, geográficas e socioeconômicas, que permitem identificar os limites do território, visando à titulação coletiva da área em benefício das famílias. O relatório constatou que a comunidade da Tapera é composta por 27 famílias e destacou que o território identificado e delimitado possui área de 594,7364 ha e perímetro de 10.744,94 m.
Devido à demora no processo, foi questionado na audiência o andamento junto ao INCRA. A representante Elisa Ribeiro Alves respondeu que o relatório será publicado entre esta semana ou a próxima no Diário Oficial do Estado do Rio de Janeiro, o que representa mais um passo para agilizar o processo. "Com a publicação no Diário Oficial do Estado, começamos a fazer as notificações aos proprietários e aos confrontantes. E também a comunicação aos órgãos para iniciar uma negociação em relação ao território", explicou.
Recorte estadual
Em relação à titulação, Ana Beatriz, presidente da Associação de Comunidades Remanescentes de Quilombo do Estado do Rio de Janeiro, informou que existem em todo o estado 54 territórios quilombolas, porém apenas quatro desses são titulados. Para ela, a luta do Tapera é importante para reforçar a ideia dos que construíram Petrópolis. "Ser negro no Brasil é difícil, ser quilombola é mais ainda. Quando vemos um município como Petrópolis, que é negro, porque quando a gente entra e vê todas as obras que estão nesse lugar, sabemos quem construiu essa cidade e há quantas duras penas foi construída com choro, suor, lágrima, morte e escravidão. Então entendemos que dentro dessa polis existe uma população quilombola que vem resistindo dia após dia", enfatizou.