De vez em quando, o Brasil encontra jeitos peculiares de comunicar o que não pode ser dito. Durante os anos mais duros da Ditadura Militar, quando a tesoura da censura cortava notícias inteiras, o país descobriu um recurso improvável para denunciar o silêncio imposto: receitas de bolo. Sim, bolos de fubá, bombons caseiros, às vezes até instruções incompletas. Não havia nada de gastronômico ali. Era resistência.
Bastava abrir o jornal para notar o disparate. Entre matérias burocráticas e notas sobre eventos comuns, surgiam instruções culinárias com duas colheres de… nada. Ou pedindo um quilo de sal (algo que deveria ser, propositalmente, intragável). Não era um desvio editorial, era um aviso: algo que deveria estar ali, não está mais. Foi tirado. Aquela receita era o fantasma de uma informação arrancada.
Essas inserções culinárias tornaram-se símbolos involuntários de criatividade contra a repressão. Não era uma nostalgia açucarada. Muitas tratavam de mortes suspeitas, tortura, investigações abafadas. E ali estava o bolo, ocupando o espaço da verdade. A receita não alimentava; denunciava.
A ironia é que alguns leitores tentavam preparar os bolos. Reclamavam que não davam certo. O objetivo não era adoçar o dia, e sim azedar a censura. Era o jornal acenando ao leitor: "Há algo que você precisa saber, mas não nos deixam contar". As instruções continham pedidos desproporcionais de propósito (como 1kg de açúcar) para que o leitor percebesse a estranheza.
Cada redação inventava seu próprio código. Poemas renascentistas, páginas sem título, melodias de "Strangers In The Night" de Frank Sinatra para avisar da chegada de um censor. O Brasil sempre foi especialista em empurrar limites; e, naqueles anos, fez isso em silêncio.
Hoje, relembrar essas receitas é recusar que o passado seja suavizado. A censura pode mudar de nome, de forma ou de justificativa. Mas enquanto houver alguém tentando calar, haverá alguém disposto a transformar até um bolo em grito.