Por: Fernando Molica

Palco Gospel atenta contra origem do Réveillon nas praias

O Palco Gospel está entre as 13 estruturas que serão espalhadas pela cidade | Foto: Divulgação

Ao listar os artistas que se apresentarão no Réveillon e assim tentar mostrar que a Prefeitura não privilegiava evangélicos, Eduardo Paes provou o contrário: o Palco Gospel, no Leme, é o único que será dedicado a adeptos de uma corrente religiosa. Todos os outros 12 têm programação laica.

Ao designar um espaço exclusivo para músicos e fiéis de uma religião, Paes atenta contra as origens da grande comemoração nas praias em homenagem a Iemanjá e contra o próprio público: quem mora no Leme ou, até por razões logísticas, prefere ficar por lá na passagem do ano será obrigado a ouvir um repertório que deveria ficar restrito às igrejas, às casas dos fiéis e a eventos evangélicos, como as marchas para Jesus.

Num estado laico, nenhum cidadão deve ser obrigado a ouvir cânticos evangélicos, hinos católicos ou pontos de umbanda em uma festa que reúne pessoas de diferentes adesões religiosas, e, mesmo, ateus. Além disso, segundo o último censo, o catolicismo é a religião que reúne o maior número de adeptos no Estado do Rio: 38,92% (os evangélicos são 32%). 

A criação, ainda mais com dinheiro público, de um espaço evangélico no meio de uma manifestação de raízes na umbanda reforça o proselitismo de boa parte dos fiéis deste campo do cristianismo. Para estes — especialmente os de viés pentecostal e neopentecostal —, devotos de outras religiões cultuam o demônio. Umbandistas e candomblecistas são as principais vítimas dos ataques, direcionados também a católicos.

Para muitos evangélicos, converter quem pratica outras crenças é uma obrigação. Essa lógica agrava ainda mais a existência de um palco gospel que, simbolicamente, funciona como uma espécie de cabeça de ponte cravada no território considerado inimigo.

Como ensina o historiador Luiz Antonio Simas, a festa nas praias começou no início dos anos 1950 por uma iniciativa do Tata (sacerdote) Tancredo Silva, criador da Federação Espírita de Umbanda e da Confederação Umbandista do Brasil. Com as homenagens públicas a Iemanjá, ele buscava popularizar a sua religião.

Quem tem mais de 50 anos deve lembrar que, nas noites de cada 31 de dezembro, a areia das praias ficava iluminada por velas, colocadas em pequenos buracos cavados por adeptos dessas religiões. Terreiros promoviam seus cultos à beira-mar, entregavam oferendas para Iemanjá, entoavam cânticos, davam consultas, distribuiam passes.

No final da década de 1980, um hotel da orla do Leme, o Méridien, resolveu promover uma queima de fogos para marcar a virada de ano. A iniciativa foi imitada por outros estabelecimentos, a nova festa derrubou a anterior e se tornou gigante; incorporada ao calendário oficial da cidade e passou a ser replicada em praticamente todas as cidades litorâneas do país. 

Acuados, os umbandistas recuaram, passaram a fazer o culto mais cedo, ou em dias anteriores. O impacto foi tamanho que o 2 de Fevereiro — dedicado a Iemanjá em Salvador e em outras cidades — passou a ganhar força no Rio, o 31 de Dezembro foi sendo abandonado.

Paes, diante das críticas ao palco gospel feitas pelo babalaô Ivanir dos Santos, reclamou "do nível do preconceito dessa gente". Preconceito é escrever "dessa gente", expressão discriminatória, que aparta, que separa. E, prefeito, essa gente é que criou a festa, vale lembrar disso na hora de escolher a camisa branca — outra marca das religiões de origem africana — que certamente usará na chegada de 2026.