O Rio de Janeiro é a cidade que mais viveu a política brasileira. Nenhum outro território concentrou tanta história, glória e trauma. O Rio foi o laboratório de todas as nossas experiências de poder, coloniais, imperiais, republicanas, populistas e democráticas.
Desde o início, foi uma terra disputada por portugueses, espanhóis, corsários ingleses e franceses. Sua baía, de beleza e importância estratégica únicas, foi o ponto de contato entre o sonho europeu e o mistério americano. Viveu as capitanias hereditárias, as lutas pela posse do território e o nascimento de uma sociedade mestiça, criativa e rebelde.
A grande virada veio em 1808, com a chegada da corte portuguesa. Nenhum outro país das Américas recebeu um império europeu inteiro. Dom João VI trouxe o poder, as instituições e a modernidade. Criou o Banco do Brasil, a Imprensa Régia, o Jardim Botânico e a Biblioteca Nacional. O Rio deixou de ser colônia para se tornar capital do Reino. Foi o primeiro salto civilizatório do país e também o primeiro trauma: o Brasil nasceu com o poder transplantado, centralizado e distante de seu próprio povo.
A cidade seria, desde então, o palco dos grandes atos da história nacional. A Independência, proclamada por Dom Pedro I; as Regências e suas revoltas; o Império e seu longo ciclo de estabilidade e desigualdade; o florescimento cultural e científico do Segundo Reinado; e, por fim, a derrocada da monarquia tropical, marcada pelo fim da escravidão e pela proclamação da República.
Mas a República nasceu, também, no Rio, e nasceu militar. Foi um golpe de quartel, uma revolução de generais, que depôs o Império e instaurou um regime civil tutelado pelas fardas. Vieram depois os ciclos oligárquicos da República "café com leite", domínio alternado de mineiros e paulistas, até que novamente o Rio incendiasse a história com a Revolução de 1930, que levou Getúlio Vargas ao poder e encerrou a velha ordem.
O Rio foi o palco do Estado Novo, do trabalhismo, da industrialização e do drama final de Vargas, seu suicídio no Palácio do Catete, símbolo de uma política que misturava paixão e tragédia. Depois veio o Lacerdismo, expressão máxima da oratória e da teatralidade política carioca, prenúncio de uma era em que a política brasileira se transformaria em espetáculo.
Quando a capital foi transferida para Brasília, o Rio perdeu o centro do poder formal, mas manteve o da alma nacional. A cidade deixou de comandar o Estado, mas passou a comandar o imaginário. Brasília representava o poder racional e planejado; o Rio, o poder emocional e vivido. O coração político do Brasil mudou de lugar, mas a alma ficou ali, entre o Pão de Açúcar e o Corcovado.
Durante o regime militar, o Rio perdeu influência institucional, mas ganhou densidade cultural. Da resistência nasceram a bossa nova, o cinema novo, o teatro político, o jornalismo moderno e a televisão popular. O Rio tornou-se a consciência estética e moral do Brasil.
Foi também o berço de um mito urbano global: a "cidade maravilhosa", mistura de natureza e invenção humana. Do samba ao futebol, do carnaval ao calçadão de Copacabana, o Rio transformou o cotidiano em espetáculo. Exportou alegria, corpo, ritmo e linguagem. E o Brasil aprendeu a se ver e a ser visto por meio de sua estética carioca.
Nos anos 1950 a 1980, viveu um brilho planetário. Era uma Babilônia tropical, esplendorosa e contraditória, rebelde e sensual, convivendo com o contraste entre o Cristo e o morro, o mar e a desigualdade. O Rio era o palco onde o Brasil se representava diante do mundo, exuberante e ferido, moderno e arcaico, luminoso e trágico.
Mesmo depois da decadência, o Rio manteve o dom de comover. Recebeu o planeta na Copa de 2014 e nas Olimpíadas de 2016, e mostrou que ainda sabia emocionar e celebrar. Nenhuma outra cidade do mundo, em tão pouco tempo, sediou tantos eventos planetários com tamanha energia. Mas a ressaca veio rápido: colapso fiscal, corrupção, violência, desalento. O império virou ruína, e a ruína virou espelho.
Ainda assim, o Rio não se entrega. Sua força está na cultura, no talento e na resiliência, essa capacidade rara de renascer de si mesmo. É uma cidade que cai e se ergue, que se perde e se reencontra. Como a Babilônia bíblica, é símbolo de grandeza e advertência: mostra o que o Brasil pode ser e o que o Brasil teme se tornar.
O que o Rio mostrou todos esses anos é que sempre conseguiu sair das encruzilhadas e surpreender. A Babilônia carioca sempre deu a volta por cima, até aqui, até agora. A encruzilhada desta vez parece maior. A proporcionalidade do problema aumentou. Mas nem por isso, como em tantas outras vezes, devemos desistir.
O Rio fundou a grande inteligência do sistema financeiro brasileiro, do petróleo e gás e da economia criativa. Agora, dá novos passos ao olhar o futuro com os olhos do Brasil: aposta em inovação, tecnologia, inteligência artificial e data centers, em meio a revoluções que já estão na cabeça do prefeito Eduardo Paes, com o apoio do Milken Institute, um dos mais respeitados think tanks americanos.
Em meio a tantos desafios, o Rio aposta novamente na criatividade, na inteligência e na reinvenção. É o mesmo espírito que moveu o passado e que pode redesenhar o futuro. O bom humor carioca nunca acaba: no máximo, faz uma pausa para uma sequência de palavrões, e logo depois volta o sorriso e a esperança no ar.
Falo como catarinense que vive a ponte aérea entre Florianópolis e São Paulo, mas que já morou no Rio em dois períodos da vida e teve a graça de ser declarado cidadão carioca pela Câmara de Vereadores. Foi um dos melhores presentes que recebi na vida pública — e talvez o mais simbólico, porque me fez entender que o Rio é mais do que uma cidade: é uma alma que o Brasil inteiro carrega dentro de si.
*Vinícius Lummertz é Senior Fellow do Milken Institute, foi ministro do Turismo e secretário de Turismo e Viagens de São Paulo.