Por: Vinícius Lummertz*

O peso dos salvadores feridos

Não compreenderemos o mundo apenas com lentes políticas, econômicas ou jurídicas. Não é mais suficientemente , como nunca foi . É preciso somar a psicanálise para decifrar o que se esconde atrás das máscaras de líderes e pensadores que marcaram a história e ainda nos afetam . Muitos dos que se apresentaram como "salvadores da pátria" carregavam feridas íntimas, ressentimentos e traços obsessivos que moldaram suas ideias e estilos de liderança. Inteligentes e carismáticos, projetaram traumas pessoais em doutrinas coletivas, misturando sentimentos justos como a indignação diante da desigualdade ou a promessa de ordem , com rigidez autoritária que mascarava seus fantasmas.

Jean-Jacques Rousseau, órfão de mãe que morreu no seu parto foi marcado pela rejeição ; idealizaria o homem natural , e terminaria isolado, odiando a sociedade concreta dizem relatos históricos . Foi o maior influenciador da Revolução Francesa e do Reino do Terror que a seguiu. Escreveu sobre o "bom selvagem" inspirado em indígenas brasileiros que nunca conheceu, ignorando inclusive a antropofagia que devorou o bispo Sardinha. Karl Marx, em permanente conflito com o meio acadêmico e familiar, dependia da esposa e do amigo Engels para sobreviver, enquanto denunciava as injustiças da Revolução Industrial. Criou um proletariado redentor contra um burguês degenerado, transformando análise em catecismo. Robespierre, Lenin, Stálin, Hitler e vários orientais levaram esse padrão às últimas consequências: dividiram o mundo em puros e impuros, autorizando pedagogias de ferro, tribunais morais e até genocídios.

Mussolini, por sua vez, é exemplo clássico do narcisismo político. Frustrado em sua juventude como escritor e jornalista socialista , buscou na política o palco que lhe faltava. Cultivava uma estética da virilidade , uniformes, gestos teatrais, coreografias públicas para mascarar complexos de inferioridade e fracassos pessoais , na leitura de muitos psicanalistas . Seu fascismo nasceu menos de uma doutrina consistente do que da necessidade de projetar grandeza própria sobre a massa .

Não é coincidência: traumas íntimos costumam se converter em narrativas de redenção coletiva. Muitos líderes marcados por infâncias e juventudes problemáticas , órfãos, humilhados, excluídos, encontraram na política ou na religião a promessa de superação pessoal, mas às custas da liberdade alheia. A psicanálise explica: a projeção lança sobre os outros o que não se suporta em si; a clivagem divide o mundo em bons e maus e o narcisismo coloca o líder como intérprete exclusivo da verdade. Assim, falhas de caráter e ressentimentos privados se disfarçam de virtudes públicas.

Esse padrão atravessa séculos. Regimes marxistas criaram seus "redentores do homem novo", disfarçados de pedagogos do proletariado. Do outro lado, fundamentalistas islâmicos falam em nome de Deus para justificar violência contra "ímpios" e impor sociedades submetidas a códigos medievais. O objetivo não é apenas religioso: é político e de poder, tentativas de controlar territórios, recursos e consciências em nome de uma pureza absoluta. O mesmo ocorreu na Inquisição espanhola, quando a defesa da fé virou tribunal de tortura. Em todos os casos, a bondade proclamada , salvar o homem, salvar a alma , escondia a sombra dos complexos pessoais , como retratam livros e filmes.

Hitler talvez seja o caso mais emblemático: um líder que se vendia como asceta e higiênico, defensor de uma vida "pura", mas que usava essa máscara para legitimar perseguições raciais e genocídio. Do outro lado do front, Churchill, fumante de charutos , e amante de bebidas, representava a humanidade falha, mas capaz de enfrentar o totalitarismo com realismo. Entre o higienismo hipócrita e a imperfeição assumida, foi Churchill, ao lado de Roosevelt em sua cadeira de rodas, que salvaram a democracia.

O contraste ecoa no presente. Muitos líderes ainda dividem sociedades . Uns se apresentam como incorruptíveis, outros como patriarcas austeros , sempre como únicos capazes de salvar. As redes sociais amplificam esse narcisismo: quanto mais simples o inimigo, mais engajamento; quanto mais moralista o discurso, mais viral. Nunca os complexos individuais tiveram uma lente de aumento tão poderosa, capaz de incendiar o planeta.

Há, porém, tradições mais realistas. Marco Aurélio, com o estoicismo, ensinava a suportar contradições sem buscar purezas impossíveis. Hobbes, no Leviatã, foi mais lúcido que Rousseau: não acreditava em bondades originais perdidas, mas reconhecia a ambivalência humana , biológica e espiritual, movida por paixões, medo e agressividade. Seu contrato social não nasceu de um mito, mas da necessidade prática de conter a violência.

Democracia não é paraíso; é tecnologia de contenção. Existe para limitar salvadores de ocasião, proteger causas justas de seus falsos paladinos e obrigar-nos a conviver com o imperfeito. O dilema entre pureza e realismo, entre o mito da redenção e a aceitação do humano contraditório, atravessa nosso tempo. O futuro dependerá de recusar os grilhões psicológicos dos "salvadores feridos" e escolher a política adulta: aquela que não promete paraísos, mas garante convivência.

Hoje, a dimensão dos complexos individuais encontra eco nas redes sociais e em suas conexões neurais. Esse êxtase supera a racionalidade e cria novos riscos globais. Falta-nos um novo Hobbes para explicar. O mais próximo, apenas para mim, é Jordan Peterson, psicólogo clínico, professor da Universidade de Toronto, censurado, cancelado e combatido pela cultura woke. Se não trouxermos psicanálise e história para dentro da política, no entanto, ficaremos cegos diante de como traumas, complexos e ressentimentos moldam o destino coletivo. A análise econômica, política e jurídica é necessária, mas não suficiente. Só entendendo os "salvadores feridos" em sua dimensão psíquica poderemos impedir que se repita, em nome da pureza ou da fé, os mesmos ciclos de destruição.

*Cientista Político. Foi Ministro do Turismo e Presidente da Embratur.