Por: Ruy Conde* e Isabel Carvalho**

Inteligência artificial: entre o discurso e a realidade

Apesar da crescente produção de princípios éticos e declarações públicas sobre inteligência artificial, a distância entre o discurso e a aplicação prática continua ampla. A maioria das propostas de regulação ainda não saiu do papel, travadas por disputas econômicas, pressões de grandes empresas de tecnologia e, muitas vezes, por falta de interesse político real em enfrentar os impactos da IA com regras claras.

Enquanto isso, a discriminação algorítmica avança silenciosamente. Sistemas usados em crédito, segurança pública e processos de recrutamento continuam operando sem transparência, afetando de forma desproporcional grupos historicamente marginalizados. O discurso da neutralidade técnica, usado com frequência para blindar esses sistemas de críticas, ignora que os algoritmos apenas automatizam desigualdades pré-existentes.

Em novembro de 2023, participamos da construção da Declaração de Princípios de Direitos Humanos no âmbito da Inteligência Artificial no Mercosul, aprovada durante a 42ª Reunião de Altas Autoridades sobre Direitos Humanos (RAADH), em Brasília. O documento, inédito na região, foi elaborado sob a coordenação da Assessoria de Comunicação do Ministério dos Direitos Humanos e da Cidadania — da qual éramos, respectivamente, chefe e coordenadora de jornalismo — com apoio técnico do Instituto de Políticas Públicas em Direitos Humanos (IPPDH).

Pela primeira vez, uma declaração sobre inteligência artificial foi concebida a partir da perspectiva dos direitos humanos e liderada por uma equipe de comunicação institucional. O texto reflete um avanço importante na integração entre tecnologia e direitos fundamentais, tratando de temas como soberania digital, riscos do uso de reconhecimento facial, impactos assimétricos da tecnologia sobre o Sul Global e a urgência de critérios públicos, transparentes e éticos na formulação de sistemas automatizados.

Apesar das resistências iniciais de algumas delegações em aceitar certos temas sensíveis, e da relutância de outras em aprovar o texto como um todo, a declaração foi aprovada por consenso e estabeleceu um marco político e simbólico para o bloco. Ainda distante de se traduzir em políticas concretas, ela abre caminhos e baliza futuras decisões no campo da regulação tecnológica com foco na dignidade humana.

Desde então, houve algum avanço no plano legislativo. O principal deles, no Brasil, é o Projeto de Lei 2338/2023, que propõe um marco legal para a inteligência artificial. O texto, que tramita atualmente no Senado sob relatoria do senador Eduardo Gomes (PL-TO), classifica sistemas de IA por grau de risco e propõe a criação de uma autoridade reguladora. No entanto, o projeto ainda é genérico em pontos cruciais, como responsabilização de danos e mecanismos para mitigar vieses.

No cenário internacional, a União Europeia aprovou o AI Act, e organismos como a Unesco e a OCDE adotaram diretrizes alinhadas com o que foi proposto no Mercosul. Ainda assim, a implementação efetiva dessas iniciativas é lenta e, em muitos casos, apenas simbólica.

É preciso reconhecer que a inércia atual não é apenas técnica, é política. O que está em jogo não é a ausência de princípios, mas sim a ausência de vontade para colocá-los em prática. Sem regulação séria, fiscalização independente e participação pública, o risco é transformar a inteligência artificial em mais um vetor de exclusão.

A tecnologia avança. A regulação, nem tanto.

*Ruy Conde - CEO da It Comunicação Integrada

**Isabel Carvalho - Assessora-chefe de Comunicação Social da DPU