Morto ontem, aos 89 anos, o ex-presidente uruguaio José "Pepe" Mujica não deveria ser ídolo apenas da esquerda, mas de todas as pessoas de bem — e isso, não por uma questão ideológica. Ele foi um raro exemplo de alguém que, mais do que a uma causa, dedicou-se à vida. E o fez de uma maneira radical, no melhor sentido da palavra.
Sua biografia parecia não se encaixar na figura daquele velhinho simpático e bonachão que, embora presidente da República, vivia num sítio muito simples em companhia da mulher, de uma cadela de três pernas e de um fusca. As aparências enganavam: ele nunca foi quietinho nem comportado.
Um dos tantos jovens latino-americanos encantados pelos ventos que sopraram da cubana Sierra Maestra, Mujica embarcou num projeto revolucionário no fim dos anos 1960, processo que se tornaria mais agudo depois da implantação da ditadura cívico-militar, em 1973. Preso, foi torturado, ficou isolado do mundo por 14 anos.
Libertado na redemocratização, Mujica soube se reciclar, trocou a adesão a uma impossível luta armada por uma proposta ampla, inclusiva, mais sintonizada com o sentimento da maioria da população. Uma postura também radical, que embutia a humildade de reconhecer erros.
O viés político de sua trajetória impede muita gente de vê-lo com admiração e carinho — afinal de contas, foi um extremista que entrou para uma organização armada de esquerda. Mas não é preciso concordar com seus métodos e visões de mundo para nele reconhecer um homem digno.
Radicais como Mujica nos desafiam, despertam inevitáveis reflexões sobre o que leva aqueles rapazes e aquelas moças a, aos nossos olhos, abrirem mão de suas vidas em nome de uma causa. É mais ou menos quando olhávamos para o papa Francisco e, agora, encaramos Leão XIV. Por que, em plena juventude, ele decidiram trocar o que julgamos ser a vida por caminhos duros, cheios de limitações, desafios e riscos?
Talvez porque, como disse Paulinho da Viola, a vida não é só isso que se vê. Temos diferentes maneiras de encarar o presente e o futuro — nem nossas versões do passado coincidem. Há os que — certos ou errados — decidem que não dá para se ter uma vida plena num mundo tão desigual, Mujica foi um deles.
Mas a opção pela luta armada e a posterior conversão a um projeto institucional não foram os fatos que mais supreenderam o mundo, muita gente já fez isso. O que nos assustou mesmo foi sua decisão de recusar todos os parangolés que caracterizam o poder.
Talvez por herança dos ritos monárquicos, nos acostumamos a associar cargos de comando ao luxo; normalizamos palácios, jatinhos, aposentadorias precoces e generosas, salários cheios de penduricalhos. Acabamos perdendo de vista algo que deveria ser básico: o governante é um funcionário público, alguém que, por vontade própria, decidiu trabalhar pelo bem comum (ou que, pelo menos, deveria fazer isso).
A pobreza de Mujica, que ainda doava boa parte do seu salário presidencial, era quase agressiva. Ele jogava na nossa cara o tamanho da doideira consumista, que exaure a natureza, que torna pobres cada dia mais pobres e faz com que bilionários não tenham a menor ideia do que fazer com tanto dinheiro.
Mujica não tinha razão de se envergonhar de seu carro, de sua casa pra lá de modesta, de suas roupas velhas. Velho sapeca, militante mais do que rodado, ele deveria saber que o efeito era o inverso: seus colegas políticos é que certamente ficavam constrangidos ao perceber a cafonice explíticita dos símbolos de poder que tanto gostam de ostentar.
No fim das contas, e apesar de todos os sofrimentos, Mujica parece ter sido um homem feliz. Desceu aos infernos, ressuscitou pra vida, amou, foi amado, continuará a ser muito querido. Conquistou o direito de ser um homem comum — e, portanto, excepcional.