Por: Leo Pinheiro*

Memória da Abolição e o abismo entre representação e realidade

Hoje é o marco de 137 anos da assinatura da Lei Áurea, que pôs fim legal à escravidão no Brasil — a última nação do Ocidente a abolir oficialmente essa atrocidade. Embora seja uma data simbólica, muitos intelectuais, ativistas e movimentos negros questionam se há de fato o que se comemorar. A abolição, feita sem qualquer política de reparação ou inclusão social, deixou milhões de ex-escravizados e seus descendentes à margem da sociedade, inaugurando um ciclo de exclusão que reverbera até hoje.

Eis que em 1988 a TV Globo levou ao ar a novela Vale Tudo, um grande sucesso de crítica e público, que, em meio ao enredo que discutia corrupção, ética e desigualdade social, destacaram-se atrizes Regina Duarte e Glória Pires. Suas atuações representaram um marco. Com falas complexas e presença significativa na trama, elas conquistaram respeito artístico, e foram vistas como símbolos de avanço na representação feminina na mídia. Mas no ano do centenário da abolição Vale Tudo passou em branco.

Após 37 anos, a TV Globo exibe uma nova versão da clássica novela, agora, reimaginada com uma leitura contemporânea e com elenco mais diverso. Entre os destaques da nova versão está a personagem Raquel, interpretada por Taís Araújo. Na trama, ela é uma mulher batalhadora que conquista seu espaço na sociedade, superando obstáculos e — já sabemos — muda-se para um luxuoso apartamento em um bairro nobre. É uma narrativa de ascensão que pretende inspirar, mas que, infelizmente, distorce a realidade de milhões de mulheres negras no Brasil.

A imagem de Raquel subindo pelo elevador social com dignidade e independência contrasta violentamente com o cotidiano de suas equivalentes na vida real. Em prédios como aquele em que Raquel viverá na ficção, muitas mulheres negras ainda são orientadas (ou constrangidas) a usar o elevador de serviço. Elas não são vistas como protagonistas de suas histórias, mas como auxiliares das vidas de outros.

Essa contradição escancara o abismo entre a representatividade na ficção e a exclusão concreta que marca o cotidiano da população negra. A presença de atrizes negras em papéis centrais é um avanço importante, mas não deve ser confundida com progresso estrutural. A ascensão de uma personagem como Raquel não espelha a trajetória da maioria das mulheres negras brasileiras, que continuam ocupando os postos mais precarizados do mercado de trabalho, com salários baixos, pouca proteção e carga horária exaustiva.

Em vez de sinalizar um Brasil igualitário, esse tipo de narrativa pode alimentar uma perigosa ilusão de meritocracia: a ideia de que o sucesso depende apenas de esforço individual, ignorando os obstáculos históricos, sociais e raciais que impedem milhões de Raquéis reais de mudar de vida. Afinal, o racismo à brasileira é cordial, mas cruel. Ele não nega direitos abertamente, mas naturaliza a exclusão, justifica a desigualdade e celebra exceções como se fossem regra.

Neste dia 13 de maio, mais do que comemorar, o Brasil precisa refletir se o fim da escravidão significou o fim do racismo. E o sucesso de personagens fictícias negras não apaga o fato de que, para muitas mulheres negras, o elevador social ainda é apenas uma metáfora distante. As leis mudaram; as estruturas, nem tanto. É preciso lembrar que a liberdade sem dignidade, sem moradia, sem segurança, e sem respeito é apenas outra forma de opressão.

Enquanto as Raquéis da novela conquistam coberturas no horário nobre, as Raquéis da vida real seguem invisíveis, subindo silenciosamente pelo elevador de serviço, o último vestígio de uma escravidão que, embora não tenha mais grilhões, segue viva na arquitetura das cidades e na mentalidade das elites.

A abolição incompleta exige memória e ação. É preciso lembrar que liberdade formal sem políticas públicas é apenas retórica. A verdadeira novela ainda está sendo escrita. E o final feliz depende de políticas públicas com consciência crítica e ação coletiva de justiça social, reparação histórica e igualdade de oportunidades. Até lá seguimos entre o brilho das telas e dura a realidade da porta dos fundos.

*Diretor de Cinema e Jornalista, com passagem por revistas como Veja, Isto É, Exame e Viver Brasil, onde atuou como correspondente internacional em Nova Iorque