Por: Fernando Molica

O futuro papa e a ironia de Stalin

Os 133 cardeais que se reúnem a partir de hoje na Capela Sistina têm um desafio muito maior do que escolher o sucessor de Francisco, o de responder a uma ironia feita há 90 anos pelo soviético Josef Stalin ao questionar o tamanho do poder da Igreja Católica. "Quantas divisões tem o papa?", perguntou o ditador numa referência ao fato de o Vaticano não ter exército.

A falta de capacidade bélica foi, ao longo dos séculos — dois milênios —, compensada por uma mistura de poderes políticos e religiosos que transformavam o papa numa referência fundamental para praticamente tudo no Ocidente. Nas últimas décadas, porém o "Roma locuta, causa finita" — o papa falou, tá falado — perdeu muita importância.

Abalada pelas sucessivos conflitos mundiais, especialmente em solo europeu, e por omissões como no caso do massacre de judeus pelos nazistas, a Igreja Católica tem reagido mal a desafios da modernidade. É compreensível que se posicione contra o aborto, mas tropeçou em temas como divórcio, sexo antes do casamento, pílulas anticoncepcionais, uso de camisinha para prevenção à aids, fim do celibato de religiosos, empoderamento de mulheres, aceitação de homossexuais. 

Pior de tudo para o Vaticano: suas opiniões e interdições passaram a ser cada vez menos levadas em conta. Certamente ainda há aqueles que temem a danação eterna por descumprir alguns desses preceitos, os que ainda carregam a culpa por descumpri-los, os que descontam em inocentes as consequências da negação do corpo e de seus desejos; mas, em geral, as determinações romanas perderam muito peso.

A comprovação de inúmeros de casos de tolerância com abuso sexual de crianças expôs de vez a contradição de uma Igreja que, mesmo admitindo-se pecadora, cobra uma impossível santidade de seus fiéis. É fácil se dizer católico, o complicado é seguir as determinações papais (como dizia o escritor e ex-seminarista Carlos Heitor Cony, ser católico não é para quem quer, mas para quem pode).

Ao longo de seu pontificado, Francisco buscou arejar o ambiente romano, mostrou-se aberto a características humanas, às imperfeições que nos caracterizam. Mas esteve longe de ser uma unanimidade até mesmo dentro de uma Igreja Católica que parece perdida entre os apelos da modernidade e o crescimento de um fundamentalismo religioso estimulado por questões econômicas, políticas e culturais.

Centralizada em torno de um homem que considera ungido pelo Espírito Santo, a Igreja Católica demonstra ser incapaz de concorrer com denominações evangélicas que se reproduzem de maneira incontrolável, capazes de se adaptar às variadas exigências de seu público-alvo. Um católico não pode trocar de papa, protestantes não têm qualquer problema em mudar de igreja e de pastor, um privilégio bem mais adequado ao individualismo dos novos tempos.

A centralidade da figura do papa impõe limites à atuação do pontífice da vez. Cada gesto ou fala precisa ser medido para evitar reclamações de um lado ou de outro. Esse tipo de cuidado, típico do universo político, é contraditório com a ideia de infalibilidade do homem que veste branco, acaba reforçando o questionamento à sua suposta santidade. 

Volta e meia Roma é cobrada por eventuais excessos do Concílio Vaticano II, por supostos descaminhos na busca pelo "aggiornamento", tentativa de uma maior sintonia com o mundo. João Paulo II tratou de dar um freio de arrumação no que considerava excessos: aqui na América Latina, sua férula (aquele bastão alto) serviu de cassetete na repressão à ala mais à esquerda.

Nem ele, porém, escapou da necessidade de ser dúbio: cobrado por seus gestos contra a Teologia da Libertação — que usa elementos marxistas na leitura bíblica —, ele apelou para um jogo de palavras, alegou que o papa não podia ser contra o papa. 

Hoje, cardeais do mundo inteiro repetem a missão impossível de tentar encontrar alguém capaz de conciliar determinações que consideram divinas com a realidade de pessoas cada vez mais voltadas para seus próprios interesses e donas de suas vontades.

Numa ironia, a União Soviética consolidada por Stalin foi tragada pela história, apesar das muitas divisões de seu poderoso exército. Neste caso, a Igreja Católica riu por último, continua viva, mas sabe que seu campo de manobras é cada vez mais restrito.