Entidades ecumênicas, com representantes em Campinas (SP), repudiaram a suspensão das redes sociais do padre Júlio Lancellotti, assim como a interrupção das transmissões pela internet das missas celebradas por ele, que alcançavam cerca de 15 mil internautas simultaneamente. A interrupção foi determinada pelo arcebispo dom Odilo Scherer da Arquidiocese de São Paulo e comemorada por católicos fervorosos, incluindo moradores da cidade.
Lancellotti não foi afastado das funções na Paróquia de São Miguel Arcanjo, no bairro da Mooca, na Capital paulista, onde segue celebrando missas às 10h aos domingos, mas não pode mais divulgá-las virtualmente por ordem do bispo. A Arquidiocese afirma que o afastou para protegê-lo do linchamento público pela internet, a fim de preservar a integridade mental do sacerdote, que completa 78 anos dia 27.
O CESEEP (Centro Ecumênico de Serviços à Evangelização e Educação Popular), que conta com membros em Campinas (SP), lançou uma carta aberta em solidariedade ao padre.
“A trajetória de mais de quatro décadas na mesma paróquia não é mero dado biográfico: é testemunho histórico de fidelidade ao Deus dos pobres, ao Cristo crucificado nas calçadas, nos viadutos, nos corpos violentados, famintos e esquecidos. Sua atuação pastoral sempre nos ensinou que “fora dos pobres não há salvação” e que a Igreja só é fiel a Jesus quando se ajoelha diante dos últimos”, pontua o texto.
Polêmicas
Lancellotti é mundialmente conhecido pelo trabalho feito em relação às pessoas em situação de rua e polêmico pelo tratamento dado a elas. Além disso, foi acusado de pedofilia, alvo de tentativas de CPI e de abaixo-assinados enviados ao Vaticano. É adepto da doutrina “fora dos pobres não há salvação” e da Teologia da Libertação, execradas pela Santa Sé por colocar os pobres como centro do catolicismo, em detrimento a Deus.
Heresia
A principal crítica do Vaticano, expressa na Libertatis Nuntius publicada em 1984 pela Congregação para a Doutrina da Fé (então dirigida pelo Cardeal Ratzinger, futuro Papa Bento XVI), é que essa corrente teológica utiliza a análise marxista como uma ferramenta que subordina a fé a uma ideologia ateia.
Ainda de acordo com o Vaticano, ao adotar a luta de classes, substitui o mandamento cristão do amor e da reconciliação universal por uma lógica de conflito, transformando o Evangelho em uma ferramenta política de mobilização social em vez de uma mensagem de salvação.
Além disso, a Igreja adverte contra o reducionismo, onde a libertação bíblica do pecado e da morte é trocada por uma libertação temporal e terrena.
Segundo a Cúria, embora a luta contra a injustiça social seja um dever cristão, nunca deve ocultar a dimensão espiritual e transcendental porque, para a Igreja, a verdadeira justiça nasce da conversão espiritual e não da mudança das estruturas sociais por métodos revolucionários.
Assistência Social
Lancellotti combate o que denomina como aporofobia (medo ou ódio aos pobres), coordenando a entrega de alimentos, roupas e de atendimento jurídico/ social aos vulneráveis. Usou uma marreta para remover pedras instaladas pela prefeitura paulista sob viadutos para impedir que mendigos dormissem no local, inspirando a Lei Padre Júlio Lancellotti, que proíbe o uso de técnicas construtivas hostis em espaços livres públicos.
É um dos fundadores da Casa Vida, que acolhe crianças com HIV/Aids; além disso, defende os direitos da comunidade LGBTQIA+ e de usuários de substâncias químicas em regiões como a cracolândia.
Associações de moradores, comerciantes e setores do mercado imobiliário defendem a "Teoria do Imã", argumentando que a assistência humanitária contínua atrai e fixa dependentes químicos e pessoas em situação de rua, o que supostamente prejudica a segurança e a valorização econômica local.
Para o sacerdote, tais pressões refletem interesses especulativos que buscam a "limpeza social" da área em detrimento do acolhimento humano.
Para a assistente social Mariana Guardia, que mora em Campinas (SP) e trabalhou por mais de uma década em moradores em situação de rua na região, “a abordagem do padre é assistencialista e equivocada, perpetuando a situação de miséria em que os vulneráveis se encontram”. Além disso, para Mariana, que é católica fervorosa, “há desvios doutrinários e litúrgicos nas ações dele, com uma postura progressista, que vai contra os ensinamentos da Igreja, ferindo a doutrina cristã”.
Pedofilia
Em 2020, Lancellotti foi alvo de extorsão por um ex-interno da Febem, Anderson Batista, que tem um filho e exigiu do padre pagamentos sob a ameaça de denunciar supostos abusos contra a então criança. A investigação policial, no entanto, concluiu que as acusações eram falsas.
Em 2020, um vídeo supostamente mostraria o padre em uma chamada íntima com um menor. Embora o perito Reginaldo Tirotti tenha atestado a veracidade das imagens a pedido do vereador Rubinho Nunes (União Brasil-SP), o perito Mário Gazziro, da UFABC (Universidade Federal do ABC), apontou que o material era uma montagem fraudulenta.
Em virtude das novas acusações de pedofilia, a Arquidiocese de São Paulo abriu uma investigação interna conduzida pelo vigário-geral Michelino Roberto. Contudo, em janeiro de 2024, a instituição decidiu pelo arquivamento do caso, alegando falta de "materialidade" e citando que o Ministério Público de São Paulo já havia recusado a abertura de inquérito por ausência de provas consistentes.
Além das investidas jurídicas, o caso motivou uma tentativa de criação de uma CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito) na Câmara Municipal de São Paulo em 2024 para investigar as ONGs que atuam com o padre, mas a proposta perdeu força política após a retirada de assinaturas de vereadores.
Principal autor do pedido da CPI, Rubinho Nunes (União Brasil-SP) acusa o padre de ser um "cafetão da miséria" e de atuar em conluio com ONGs que, segundo o vereador, exploraram a situação na cracolândia. Entre os parlamentares que apoiam a ofensiva estão Fernando Holiday (PL-SP), Marlon Luz (MDB-SP) e Rinaldi Digilio (União-SP).
Já Lancellotti nega veementemente todas as acusações, classificando-as como perseguição política.
Regra
Aos 77 anos, o padre já ultrapassou a idade de 75 anos, na qual, pelo Direito Canônico, os presbíteros devem apresentar seu pedido de renúncia ao bispo. Embora continue na paróquia, a Igreja utiliza o argumento do "cuidado com o ancião" para justificar o recolhimento.
Lancellotti declarou publicamente que aceita a decisão em "espírito de obediência e resiliência", reafirmando que pertence à Igreja Católica Apostólica Romana.