A violência contra os povos originários no Brasil parece sem fim. Não bastasse a ação de grileiros, que invadem aldeias fortemente armados e matam os verdadeiros donos da terra, outro crime surge: o abuso sexual de crianças. Documentos e relatos a que o Correio da Manhã teve acesso mostram a acusação contra um indígena que teria abusado sexualmente de crianças em uma aldeia Pataxó, no município de Pau Brasil, na Bahia.
A denúncia foi feita pela própria vítima, hoje com dez anos de idade. Os ataques ocorriam há cinco anos, a menina conta que não falou antes para a mãe porque não tinha como se defender, mas que agora "já é grande" e pode enfrentar o avó paterno. O registro de ocorrência foi feito na delegacia territorial da região.
O caso de violência foi denunciado a duas entidades que representam os povos originários, a União Nacional Indígena (UNI) e a Confederação dos Povos Originários das Américas (Copoa) que, juntas, emitiram uma nota de repúdio e iniciaram uma campanha contra esse tipo de violência e informaram que será criado um canal de denúncia e acolhimento às vítimas de abuso em território indígena. Procurada, a Funai não se manifestou até o fechamento da edição.
"O caso de Pau Brasil é um grito que precisa ecoar nas florestas, nas aldeias, nos centros urbanos e nas cúpulas do poder. Não aceitaremos mais que a dor das nossas crianças seja abafada por hierarquias, vaidades ou pactos de silêncio. O agressor deve ser responsabilizado exemplarmente. E todos os que sabiam e se calaram, também devem responder diante de nossa justiça e da justiça dos homens", diz a nota conjunta.
Segundo a mãe da criança, ACF, de 24 anos, o silêncio da menina TCJ, de 10 anos, foi motivado pelo medo: a menina sofria ameaça de morte (dela e da família) caso contasse para alguém a violência rotineira sofrida. A menina passou por exame de corpo de delito em Itabuna, também na Bahia.
O indígena acusado dos abusos, Francisco Pataxó da Silva, conhecido como Tico, 60 anos, tem 9 filhos e cerca de 30 netos. Após a denúncia inicial, outras quatro pessoas desse núcleo revelaram que também eram vítimas de Tico.
Apesar da denúncia das entidades e do registro de ocorrência, o Tico permanece solto.
Conforme as entidades, "este crime hediondo e inaceitável não é isolado. Ele expõe feridas profundas e urgentes do tecido social indígena, que por séculos enfrentou genocídio, etnocídio, apagamento, miséria e racismo. Porém, nenhuma opressão histórica pode justificar ou relativizar a violência sexual contra nossas crianças. Muito menos pode permitir que tradições ou práticas distorcidas sejam usadas como escudo para abusos cometidos dentro de nossos próprios territórios".
Segundo a nota emitida, a expressão "foi só uma brincadeira" não será aceita para encobrir crimes sexuais, estupros e abusos de poder contra os menores. "Toda e qualquer forma de violência sexual, sobretudo contra crianças, será tratada como violação gravíssima contra os direitos humanos, os direitos dos povos originários e a dignidade de nossas nações", pontuam.
A UNI e a Copoa convocam lideranças indígenas, organizações, mães, filhas, avós, anciãs, guerreiras e guerreiros dos povos originários a assumirem um compromisso: não mais permitir, jamais relativizar, nunca mais silenciar.
"Nossas crianças são sagradas. Quem violenta uma criança indígena, rompe com o sagrado e deve ser excluído de qualquer espaço de honra", afirma a nota.
Outras ações serão implementadas nas aldeias para conscientizar e coibir a prática do abuso e do silêncio. Confira:
TOLERÂNCIA ZERO PARA ABUSOS SEXUAIS CONTRA CRIANÇAS, ADOLESCENTES E MULHERES INDÍGENAS
Todo caso comprovado será imediatamente denunciado às autoridades indígenas dos territórios e o autor será punido por seus atos, tolerância zero.
CRIMES SEXUAIS NÃO SÃO CULTURA
Nenhuma tradição será aceita como justificativa para práticas de abuso. O respeito à cultura ancestral não pode ser confundido com conivência com a violência. A cultura indígena é de vida, de proteção, de respeito. Tudo que fere, viola ou traumatiza nossas crianças é antitradicional e anticultural.
REDE DE PROTEÇÃO À INFÂNCIA INDÍGENA
Será criada, a partir desta data, uma rede continental de monitoramento e denúncia de abusos nos territórios indígenas, composta por mulheres, mães, pajés, professores, lideranças jovens e anciãs, que terão autonomia e apoio jurídico, psicológico e político para acolher denúncias e exigir providências imediatas.
FIM DA IMPUNIDADE DENTRO DOS POVOS
Não aceitaremos mais omissões, silêncios cúmplices ou relativizações de lideranças frente a casos de violência sexual. O tempo da omissão acabou. Quem silencia frente a um abuso, também comete abuso.
ESCUTAR, ACOLHER, PROTEGER
Nossa prioridade é escutar e proteger nossas crianças, não proteger os agressores. O futuro dos nossos povos depende do bem-estar físico, espiritual e emocional de nossas crianças.