A menos de dois meses de completar 3 anos, a Lei nº 14.457/22, que estabelece o Programa Mulheres, ainda tem um longo caminho a percorrer para ter reflexos positivos no ambiente de trabalho brasileiro. Em seu Art. 1º, enunciado VI, a lei cita ações de "prevenção e combate ao assédio sexual e a outras formas de violência no âmbito do trabalho". No entanto, duas pesquisas (uma da KPMG e outra do Tribunal Superior do Trabalho) apontam que a prática do assédio tem evoluído no Brasil. Inclusive alertam que é necessário adotar medidas para combater esse tipo de crime.
De 2020 a 2024, quase 460 mil ações denunciando assédio contra mulheres foram julgadas na Justiça do Trabalho, apenas entre 2023 e 2024 houve um salto de 28%, segundo o Mapa do Assédio no Brasil 2024 da KPMG, que aponta que 30% das profissionais afirmam ter sido vítimas de assédio, sendo a violência psicológica a forma mais comum, presente em 46% dos casos. No caso de assédio sexual, o percentual chegou a 35% no período, mostra o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em sua página.
Somados, os assédios sexuais, moral e psicológico, respondem por 60% da pesquisa, destacando a gravidade e a prevalência dessas práticas em ambientes profissionais. Ainda mais grave: 92% dessas pessoas não denunciaram, seja por medo ou por falta de confiança nas instituições.
O levantamento da KPMG aborda diferentes tipos de assédio: moral/psicológico; sexual; por deficiência; de gênero; por questões de idade; relacionado à orientação sexual; discriminação religiosa; entre outros.
Resultados alarmantes
-30% dos participantes relataram ter sofrido algum tipo de assédio nos últimos 12 meses
-41% desses casos ocorreram no local de trabalho, o que reforça a responsabilidade das empresas em criar um ambiente seguro para seus funcionários
-O assédio moral/psicológico foi o mais citado, com 46% dos respondentes relatando essa forma de abuso
-14% afirmaram ter sofrido assédio sexual
Retaliação
Entre os que não denunciaram, 27% acreditavam que o caso não seria investigado, enquanto outros 23% temiam retaliação e 22% não queriam se expor. Esses números evidenciam a necessidade de as organizações aprimorarem suas políticas de resposta às denúncias, pontua a KPMG.
O levantamento revela um cenário preocupante nos ambientes de trabalho no Brasil, com as práticas de assédio moral e sexual ainda muito recorrentes e uma cultura de silêncio por parte das vítimas.
Ferramenta
O papel das palavras - e também dos silêncios - na manutenção de ambientes tóxicos são preponderantes. "Nem todo abuso é direto ou escancarado. Muitas vezes, ele se disfarça em comentários com tom depreciativo, piadas recorrentes que constrangem ou até na ausência de escuta. Isso também fere", explica Isabella Saes, jornalista e especialista em oratória e comunicação para lideranças.
Isabella destaca que a violência no ambiente profissional nem sempre vem em forma de gritos ou xingamentos. Há casos em que ela se apresenta de forma sutil, mas constante: interrupções repetidas em reuniões, sobrecarga proposital de tarefas, exclusão silenciosa de decisões importantes, exigência de metas inatingíveis.
Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), uma em cada cinco pessoas já sofreu violência psicológica no trabalho, o que mostra o quanto esse problema ainda é invisibilizado. Além disso, muitos conflitos de comunicação têm origem em diferenças geracionais mal compreendidas. É comum que profissionais mais experientes se frustrem com a objetividade dos mais jovens, enquanto novas gerações se incomodam com formalidades ou padrões antigos de liderança.
"Comunicação intergeracional exige empatia. Os mais velhos não são os únicos que têm dificuldade em se adaptar. Os mais jovens também precisam compreender a linguagem e os códigos da geração anterior. Sem esse esforço mútuo, a comunicação trava, o trabalho emperra e os ruídos crescem", analisa Isabella.
Criar um ambiente em que a escuta seja ativa e empática é parte da solução. Saber ouvir sem minimizar o relato de uma vítima, acolher sem pressionar e encaminhar sem expor são atitudes fundamentais para quebrar o ciclo de silêncio.
"Precisamos parar de achar que escutar é só ficar em silêncio enquanto o outro fala", afirma Isabella. "Escutar é validar, é perguntar 'como posso ajudar?', é não julgar. E, principalmente, é não devolver para a vítima a culpa ou o peso de ter vivido aquilo."
Isabella reforça que a escuta também deve ser estruturada por processos institucionais. "A liderança precisa se responsabilizar por criar canais reais de escuta, com protocolos, acompanhamentos e
critérios claros. Não basta ter uma ouvidoria simbólica ou um RH que funciona só no papel. O acolhimento precisa ser formalizado, reconhecido e confiável."
O silêncio de quem sofre assédio costuma ser interpretado como conformismo, mas, na prática, ele é um pedido de socorro. Por isso, é fundamental que a cultura organizacional tenha como prioridade a prevenção e o enfrentamento do assédio.
Isabella acredita que o medo só será vencido com estruturas sólidas e lideranças comprometidas. "Denunciar é difícil, e quem se cala está, muitas vezes, apenas se protegendo. O papel das empresas é garantir que existam canais seguros e que o acolhimento venha antes do julgamento", aponta.
Mudar a cultura de comunicação pode refletir, inclusive, em economia para as empresas, pois ajudará a evitar os custos de processos por assédio moral. No Brasil, as indenizações decorrentes de processos
de assédio moral podem variar de R$10 mil a milhões de reais, já que o valor é definido pelo juiz, levando em consideração a gravidade do dano, a condição econômica da empresa e do empregado.
'De cima para baixo'
De acordo com a especialista, mudar a cultura de comunicação é um desafio que começa na liderança. Gestores que adotam uma postura violenta, ainda que sutil, acabam estimulando comportamentos semelhantes na equipe. Por isso, segundo ela, a transformação precisa vir de cima.
"A cultura se molda pelo exemplo. Não adianta pedir respeito se você, enquanto líder, ridiculariza, interrompe ou ignora o que o outro diz. A comunicação não violenta é uma ferramenta de liderança. É ela que transforma relações e constrói segurança psicológica nas equipes", aponta.
Ela também ressalta que a responsabilidade da liderança não deve se limitar a evitar comportamentos abusivos. É preciso ir além: criar boas práticas de comunicação que fortaleçam vínculos, promovam
pertencimento e engajem equipes. "Não se trata apenas de evitar o que é ruim. É sobre construir o que é bom. A comunicação é um pilar de cultura e estratégia", finaliza.