Em 1965, Fernanda Montenegro subia ao palco do Cine Brasília para receber o troféu Candango de melhor atriz por sua atuação no filme “A Falecida”, de Leon Hirzman, adaptado da peça de Nelson Rodrigues. Sessenta anos depois, é a filha de Fernandona, Fernanda Torres, a Fernandinha, quem estará em março disputando o Oscar de melhor atriz por “Ainda Estou Aqui”. E é 60 anos depois que “A Falecida” volta aos palcos de Brasília, na sua versão original, como pela de teatro. A peça", escrita por Nelson Rodrigues em 1953, estará em cartaz na Caixa Cultural Brasília entre os dias 11 e 16 de fevereiro de 2025. A montagem é dirigida por Sérgio Módena e conta com a atuação de Camila Morgado, que retorna aos palcos após 11 anos de afastamento, para o papel de Zulmira, protagonizado no filme por Fernanda Montenegro.
O evento é patrocinado pela Caixa Cultural e visa levar o clássico rodrigueano à capital do país, com ingressos disponíveis por R$ 30 (inteira) e R$ 15 (meia-entrada).
"A Falecida" é uma das mais conhecidas tragédias de Nelson Rodrigues, classificada pelo crítico teatral Sábato Magaldi como parte das "Tragédias Cariocas". A obra aborda o desejo de Zulmira, uma mulher tuberculosa e frustrada, que sonha com um enterro luxuoso para causar inveja em sua prima Glorinha. O enredo se desenrola quando Zulmira, pouco antes de sua morte, pede ao marido Tuninho que busque a ajuda de um milionário, Pimentel, para bancar o enterro de 35 mil cruzeiros, valor exorbitante para a época. Após a morte de Zulmira, Tuninho descobre que o milionário e sua esposa eram amantes, o que o leva a extorquir Pimentel. Contudo, em vez de cumprir o desejo da esposa, Tuninho dá a ela um enterro modesto e aposta o dinheiro restante em um jogo de futebol.
Atemporal
Apesar de escrita nos anos 1950, "A Falecida" se mantém relevante e atual, tratando da hipocrisia e falsa moralidade de uma sociedade que persiste nas mesmas questões até hoje. A obra é reconhecida pela produção cinematográfica, lançada em 1963, protagonizada pela renomada atriz Fernanda Montenegro, primeira artista brasileira a ser indicada ao Oscar. O diretor Sérgio Módena destaca que o espetáculo aborda, ainda, o fanatismo religioso, que se tornou ainda mais significativo no Brasil contemporâneo. A personagem Zulmira é consumida pela culpa de uma vida de desilusões, e seu desejo por um enterro luxuoso representa sua tentativa de vingança contra um mundo que não oferece transformação.
A encenação da nova montagem propõe uma estética atemporal, com um cenário que remete a um mausoléu, simbolizando a ostentação em meio aos mortos, idealizado por André Cortez. A direção de arte evita uma reprodução histórica da década de 1950 e, por meio dos figurinos de Marcelo Olinto, o espetáculo sugere uma conexão entre diferentes épocas. A trilha sonora de Marcelo H, por sua vez, mistura o sagrado e o profano, com um trabalho musical que vai do samba à música de Dalva de Oliveira, referência ao humor peculiar de Nelson Rodrigues.
Renome
Camila Morgado, que protagoniza o espetáculo, retorna ao teatro com grande repercussão. Após um longo período sem atuar no palco, a atriz conquistou reconhecimento na televisão, especialmente com seu papel na novela "Renascer", da TV Globo. Ao seu lado, o ator Thelmo Fernandes, com ampla experiência em obras de Nelson Rodrigues, também é parte importante da montagem.
Sérgio Módena, diretor do espetáculo, falou ao Correio da Manhã sobre sua relação com a obra de Nelson Rodrigues e sua criação da montagem. “Eu e Camila somos apaixonados por esse texto e pelo legado de Nelson Rodrigues. E ela é uma atriz rodrigueana por excelência, assim como o Thelmo Fernandes. Esta montagem marca a minha primeira direção de uma obra de Nelson. Estamos criando uma encenação atemporal para a peça, que, originalmente, foi escrita em 1953 e se passa no subúrbio do Rio de Janeiro. Mas Nelson vai além da crônica carioca. Ele radiografa a miséria da alma humana, presente nos mais diversos lugares e épocas”, afirmou o diretor.
Em entrevista ao Correio da Manhã, Camila Morgado contou sobre suas expectativas para o papel. “É um dos personagens femininos mais complexos do Nelson, sua trajetória passa por várias camadas e temperaturas. São transformações importantes que falam deste seu
apagamento como um ser desejante. Ela transita pela raiva, pela obsessão, inveja, amor, desejo, fundamentalismo religioso. Representar uma personagem com tantas contradições e sutilezas é maravilhoso, um desafio. Nelson é um escritor que sempre li e quis fazer. De uma importância imensa para a nossa cultura e formação. Popular e erudito na sua escrita, revolucionou o teatro brasileiro. Sempre descreveu tão bem os seres do asfalto, a alma brasileira, o carioca. Montar Nelson é revisitar nossa história, nosso processo cultural”.
Remontado
O trabalho de Sérgio Módena, que comanda a encenação de "A Falecida", também é um exemplo de uma carreira consolidada no cenário teatral. Bacharel em Artes Cênicas pela Unicamp e especializado na École Philippe Gaulier, em Londres, Módena tem uma trajetória sólida como diretor, com obras como “Longa Jornada Noite Adentro” e “A Arte da Comédia”. Ao longo de sua carreira, seus espetáculos receberam mais de trinta indicações e diversos prêmios nas principais premiações teatrais de São Paulo e Rio de Janeiro.
"A Falecida", com sua atual montagem, traz um olhar renovado sobre uma obra que, mesmo após sete décadas, continua a ser um retrato da sociedade brasileira. O espetáculo, que passa por Brasília, é uma oportunidade de revisitar um clássico de Nelson Rodrigues com uma perspectiva moderna e acessível, abordando temas universais como as contradições da vida social, a obsessão por status e a hipocrisia das relações humanas.