Por: Olga de Mello - Especial para o Correio da Manhã

Fernando Molica: 'Nosso presente é um diálogo constante com o que já vivemos'

Fernando Molica, jornalista e escritor | Foto: Divulgação

"Cria" dos subúrbios carioca, Fernando Molica tornou-se "mauricinho" adulto, quando foi viver na Zona Sul. Ele mesmo considera que a mudança da família da Piedade para o Méier, em sua adolescência, conferiu-lhe um lastro de morador de bairro nobre - algo que "só quem é suburbano sabe o valor", garante. Hoje, frequenta bares e casas de amigos na Zona Norte sem olhar nostálgico - o que ele espera é que as regiões desprezadas pela especulação imobiliária recebam melhorias devidas, com a recuperação do sistema de transporte ferroviário e mais segurança.

Os bairros da infância são cenário de muitas das crônicas reunidas em "Meninos que brincaram na Lua" (Tinta Negra, R$ 49,90), cuja visão lúdica não impede a crítica e a denúncia das desigualdades sociais. Boa parte do material é inédito, mas alguns textos já foram publicados na coluna que o jornalista assina no Correio da Manhã, quando aborda temas não-políticos.

Além do jornalismo, Molica teceu uma sólida carreira literária, sendo duas vezes finalista do prêmio Jabuti e tendo dois de seus nove livros publicados no exterior. Um dos incentivadores para que se tornasse um leitor foi o pai, José Amélio Molica, que, aos 92 anos, lançou seu primeiro livro "O mundo começa em Cajuri" (Tinta Negra, R$ 42,90), com memórias da infância na roça de Minas Gerais. "Gostar de ler foi fundamental para que, depois, eu tivesse vontade de escrever. A situação em casa era confortável, permitindo a compra de livros, algo negado à maioria da população, o que se agrava com a falta de uma rede importante de bibliotecas. Meu pai escreve muito bem, tem uma memória fantástica, e é um grande contador de histórias. Seu livro é consequência disso", diz Fernando Molica, nesta entrevista ao Correio da Manhã.

A crônica, esse gênero que se situa entre o memorialismo e a discussão do momento, se apoia na nostalgia? Você se considera um saudosista ou prescinde de classificação?

Fernando Molica - A palavra crônica remete ao tempo, a registros ao longo da história, permite algum diálogo entre o jornalismo - tem a ver com o olhar, com o fato que passa na nossa frente - e a literatura. Ao organizar o livro, busquei separar os textos por temas, e o que estava disperso ganhou outra lógica. Agrupadas, as crônicas geram um novo sentido. Paulinho da Viola, costuma dizer algo como 'Não vivo no passado, mas o passado vive em mim'. Acho que isso ocorre com todos nós. É impossível desvincular nosso presente do nosso passado. Nosso presente é um diálogo constante com o que já vivemos. O futuro e todos os nossos desejos, planos e medos também passam pela releitura do que houve, pelo que foi resolvido ou superado, pelo que ainda nos aperta os calos. Não sou saudosista porque gosto muito do presente e, apesar de tudo, tenho muita expectativa em relação ao futuro, mas o passado, e aí repito Paulinho, está sempre comigo.

Como você vê a vida atual nos subúrbios cariocas? Existe forma de resgatar a tranquilidade da vida no Rio?

Vou muito a subúrbios cariocas, meu umbigo ficou por ali, pertinho da linha do trem. Vir para a Zona Sul, onde estão as praias, mais cinemas, mais teatros, foi um movimento natural numa cidade tão hierarquizada e dividida. O poder público, fazendo tabelinha com o mercado imobiliário, investiu muito mais na Zona Sul e na região da Barra, o que só agravou as diferenças. O subúrbio, tão fundamental na formação do Rio e do carioca, foi sendo deixado de lado, quem pôde foi pra Tijuca, pra Barra, pro Recreio. A desvalorização abriu espaço para a criminalidade. A insegurança também levou à adoção, nos subúrbios, do conceito de condomínios fechados, de prédios que se fecham em si, que não dialogam com a cidade e que, por isso, a tornam mais insegura.

Você gosta de, como escritor, obedecer a um calendário de pop star, participando de palestras, feiras, conversas com o leitor?

Estou longe de ser um pop star. É legal que o livro se torne algo mais pop, menos associado a uma erudição chata, a bibliotecas cheias de poeira. Literatura, acima de tudo, tem a ver com prazer. Não dá, hoje, para ignorarmos as redes sociais no processo de divulgação de livros, assim como são ótimas as feiras, as festas, as bienais. No entanto, de um modo geral, esses eventos ocorrem dentro de um determinado espaço, por um curto tempo. Servem para estimular a leitura, a curiosidade, mas não encaminham saídas, nem têm como fazer isso. Poderiam ser articulados com as secretarias de educação, com as escolas. Os colégios poderiam adotar livros de autores que, dali a tantos meses, participem de um evento na cidade. Seria um estímulo a mais para os leitores, movimentaria o mercado editorial. E permitiria um diálogo mais produtivo entre autores e leitores. Em 2026, por exemplo, Carolina Maria de Jesus será o enredo da Unidos da Tijuca. Seus livros já deveriam estar sendo lidos em todas as escolas cariocas, públicas e privadas. Ela fala de pobreza, de racismo, de fome, fala de esperança, de alegria. Trata de temas muito presentes na vida da maioria de nossas crianças e de nossos jovens. O mesmo vale para Heitor dos Prazeres, tema da Vila Isabel. Suas músicas e seus quadros já deveriam estar desfilando em todas as escolas.