Por: Thamiris de Azevedo

"Marco Temporal é insulto à Constituição", diz Krenak

Para Krenak, Marco Temporal repetirá erro cometido com os escravos há 130 anos | Foto: Tânia Rego/Agência Brasil

Era 1987 quando Ailton Krenak pintou o rosto com jenipapo no plenário do Congresso Nacional para defender a inclusão dos direitos indígenas na nova Constituição da República Federativa do Brasil, em um momento decisivo para a redemocratização do país.

“Os senhores não poderão ficar omissos. Os senhores não terão como ficar alheios a mais essa agressão movida pelo poder econômico, pela ganância, pela ignorância do que significa ser um povo indígena”, afirmou durante a sessão da Assembleia Nacional Constituinte.

A mobilização teve resultado. A Constituição de 1988 passou a contar com um capítulo específico dedicado aos povos indígenas. O Capítulo VIII – Dos Índios, composto pelos artigos 231 e 232, reconhece a organização social, os costumes, as línguas, as crenças e as tradições indígenas. O artigo 231 é considerado central ao estabelecer que “são reconhecidos aos índios os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Apesar do avanço, os direitos não se efetivaram plenamente. À reportagem, Krenak, desde 2003 o ocupante da cadeira número 5 da Academia Brasileira de Letras, resgata um marco histórico pouco lembrado fora do meio jurídico: o prazo previsto no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) para que a União concluísse as demarcações em até cinco anos após a promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988.

“A Constituição estabelecia um prazo para o Estado brasileiro entregar as terras indígenas em estado de reconhecimento. Se a promessa não se concretizou, a responsabilidade é do Estado, e não dos povos indígenas. Os povos indígenas não podem ser punidos por uma incapacidade interna da República Brasileira de fazer cumprir os princípios da Constituição”, afirma.

Marco Temporal

Em setembro de 2023, o STF julgou o Recurso Extraordinário 1.017.365, com repercussão geral, e firmou entendimento de que a tese do marco temporal é incompatível com a Constituição, ao reconhecer que os direitos territoriais indígenas são originários e não podem ser condicionados a uma data fixa. A tese do marco temporal estabelece que só teriam direito à demarcação as terras ocupadas por povos indígenas em 5 de outubro de 1988, data da promulgação da Constituição.

Mesmo assim, o Congresso Nacional aprovou o Projeto de Lei 2.903 de 2023 e, após a derrubada de vetos presidenciais, a proposta foi convertida na Lei 14.701 de 2023, que retomou a lógica do marco temporal.

Diante disso, o tema voltou ao STF, que analisa Ações Diretas de Inconstitucionalidade contra a norma, com prazo até esta quinta-feira (18) para a conclusão do julgamento. Até o fechamento desta reportagem, os ministros Flávio Dino, Gilmar Mendes e Cristiano Zanin já haviam se pronunciado pela inconstitucionalidade da aplicabilidade do dispositivo. Ainda faltam oito votos para a conclusão do julgamento.

Década de 90

Segundo Ailton Krenak, a tese do marco temporal não nasceu no Congresso nem no STF, mas dentro do próprio Poder Executivo, ainda na década de 1990, a partir de uma iniciativa administrativa do Ministério da Justiça, quando Nelson Jobim estava à frente da pasta. Para ele, ali estava o que ele chamou de “ovo da serpente”.

Krenak relata que, naquele período, uma resolução administrativa saiu do gabinete do ministro sob a alegação de que seria necessário regulamentar o artigo 231 da Constituição, mas, na prática, abriu espaço para restringir direitos originários e criar entraves ao processo de demarcação.

“O ministro da Justiça não pode fazer isso com a Constituição. Ele não tinha mandato para isso. Ali foi plantado o ovo da serpente, atravessou décadas e chocou depois”, afirma.

Ele explica que, à época, havia um grupo de trabalho instituído para efetivar a demarcação prevista no ADCT, mas o processo foi sucessivamente postergado.

“Tinha um grupo de trabalho instituído para formular a ação efetiva de reconhecimento das terras indígenas, que depois é acompanhada de procedimentos técnicos, como a demarcação física e a homologação pelo presidente da República. Esse rito é tão conhecido quanto a reza católica. É brincadeira dizer que há boa-fé ou algum princípio lógico no marco temporal”, declara.

Para Krenak, a tentativa de “regulamentar” o artigo 231 de forma restritiva acabou se transformando em uma disputa prolongada. “Isso foi virando uma bola de neve e, em alguns anos, virou ação no STF. Tem 30 anos que esses golpistas estão armados até os dentes”, afirma.

Golpe sofisticado

Ao longo da entrevista ao Correio da Manhã, Krenak foi enfático ao classificar o marco temporal como uma “excrescência jurídica”, um “insulto” e um “golpe sofisticado” contra a Constituição de 1988 e contra direitos que define como inalienáveis.

“Querem anexar à nossa Constituição um golpe contra os direitos dos povos indígenas, que são direitos inalienáveis. Eles não podem ser discutidos nesses termos. Eu sei muito bem a excrescência que é o marco temporal. Se pesquisar, você vai ver que eu falo disso há pelo menos 20 anos. A persistência desse assunto mostra que não engoliram a nossa conquista na Constituinte de 88”, afirma.

Ele também aponta a atuação de interesses econômicos organizados. “É o latifúndio, a mineração e o agronegócio. São corporações com lobby dentro do Congresso. Agora que conseguiram maioria, tentam aprovar isso por todos os meios. Já tentaram por via administrativa, pela Funai, por outras agências do Estado e durante o governo Bolsonaro. Tentam de todo jeito”, diz.

Erro de 130 anos

Para Krenak, o debate sobre o marco temporal revela a repetição de um erro histórico. Ele lembra que, após a abolição da escravidão, em 1888, o Estado brasileiro não garantiu terra, indenização ou qualquer forma de reparação à população negra.

“Há mais 130 anos, os mesmos interesses que impediram a República brasileira de doar terra ao povo que estava sendo libertado da escravidão jogaram essas pessoas na estrada, sem nada na mão”, afirma.

Na avaliação do filósofo, o país repete hoje a mesma lógica contra os povos indígenas. “Cem anos depois, eles repetem o mesmo gesto criminoso, insultando o direito dos povos indígenas ao criar o marco temporal. O marco temporal é um insulto à Constituição”, conclui.