Por: Mayariane Castro

Na ponta dos pés, bailarina do DF é destaque no clássico e no moderno

Inara: das batalhas de dança do Balroon e do Vogue... | Foto: Trevina Ball

A trajetória profissional de Inara Ramos mostra como experiências em diferentes linguagens de dança levaram à inserção na cultura Ballroom e ao desenvolvimento do estilo Vogue New Way na cena brasiliense.

A cultura ballroom nasceu nas comunidades negras e latinas LGBTQIA+ de Nova York nos anos 1970. É focado em performance, moda e celebração da identidade através de competições ("balls") em categorias como dança, como o Vogue e vestuário, com as "Houses" (famílias escolhidas) oferecendo apoio e pertencimento em um espaço de resistência política, autoexpressão e acolhimento.

Inara foi do clássico ao moderno com o mesmo talento. Na ponta dos pés, a artista começou a dançar aos três anos e recebeu o primeiro cachê aos oito, em uma apresentação de casamento. Ainda pequena, com muito a se aprender, a valorização começou antes mesmo que a artista pudesse entender o que seria trabalhar com a dança. O início formal no mercado ocorreu aos 16 anos, quando se tornou professora de balé clássico em uma escola de Brasília. Desde então, passou por companhias e projetos variados, atuando simultaneamente como intérprete, professora e artista independente.

Dança urbana

O contato com o voguing, uma vertente das danças urbanas, ocorreu em 2023, após assistir a uma batalha de dança em que a performance de uma artista chamou sua atenção pela postura e por elementos que a lembravam do balé clássico.

Sem referências sobre o estilo, Inara buscou informações pela internet e chegou ao Vogue New Way, um estilo dentro do Voguing, o que a fez começar a praticar com aulas particulares. A aproximação com figuras importantes da cena Ballroom brasileira ocorreu paralelamente, em trabalhos que reuniam artistas reconhecidos nacionalmente, o que aumentou ainda mais o seu interesse pela área. Após expressar interesse pela cultura, recebeu convite para ingressar como integrante na House of Hands Up, considerada pioneira na cena do país.

A participação nos bailes, conhecidos como balls, eventos que reúnem categorias de performance e celebração da cultura Ballroom, consolidou sua presença no New Way. Em sua primeira Ball, em 2023, Inara foi anunciada como integrante da House Hands Up e venceu o maior prêmio da categoria para iniciantes. Desde então, acumulou mais de 15 premiações e passou a organizar treinos abertos em Brasília, contribuindo para a formação de novos praticantes do estilo na cena brasiliense.

Para a artista, o New Way se tornou um espaço de identificação corporal e criativa, em que bases do balé se articulam de forma livre e coerente com sua trajetória. Seus principais mestres incluem Margot, Icon Mother Kona Hands Up e Biel Moraes.

“O New Way me traz a sensação de poder abraçar a grandeza e a elegância que essa dança traz com muita verdade e autenticidade. Por eu ser uma pessoa flexível e com bases da dança clássica, sinto que consigo usar esses elementos de uma forma mais livre e com uma identificação absurda. É como se eu tivesse encontrado a parte do quebra-cabeça que faltava. Consigo me sentir em paz por ser grande. Quando eu danço New Way parece que consigo abraçar minha grandeza, minha elegância e ser celebrada por isso com meu corpo exatamente como é. Me remete ao balé clássico pela postura de realeza e ao mesmo tempo me dá ferramentas pra eu ser exatamente quem eu sou. É até difícil explicar, foi um pedaço da minha identidade muito importante que eu encontrei”, conta Inara.

Entre as conquistas que considera mais significativas estão a obtenção de bolsas internacionais para balé clássico, uma aos 18 anos e outra integral para um programa de treinamento nos Estados Unidos, além da experiência de três meses em Portugal, onde participou de aulas e estágio.

A atuação como coreógrafa representa outra etapa relevante de sua carreira, com trabalhos premiados em grupo, solos, duos e trios. Em 2025, recebeu um prêmio de melhor coreógrafa e de melhor bailarina na Mostra Goiana, competição de dança em Goiânia, no Goiás. “Me tornar coreógrafa e ser reconhecida por isso também é uma das maiores conquistas da minha vida. Me ver sendo capaz de criar coisas e ter pessoas acreditando e confiando no meu trabalho é uma grande realização”.

A identificação com a cultura Ballroom vai além da técnica. A artista destaca que o voguing não se separa das raízes pretas, latinas, periféricas e LGBTQIAPN+ que estruturam o movimento. Inara Ramos enxerga nos balls um espaço de liberdade simbólica, onde é possível ocupar lugares historicamente negados, como os de realeza, elegância e poder, que são pontos valorizados e existentes dentro do balé clássico. Nesse ambiente, ela afirma sentir pertencimento e possibilidade de expressão sem mediações externas, e aproveita destes momentos para elevar sua autoestima também.

“Tirar o Vogue da Ballroom é esvaziar a história pra caber numa caixinha de mais uma estética de dança, então é impossível eu falar da minha identificação com o Vogue sem falar dessa cultura preta, latina e periférica e LGBTQIAPN+ que mesmo tão nova no Brasil já mudou tantas vidas trazendo propósito, identidade e um lugar seguro pra crescer em comunidade. Uma das coisas que eu mais amo é me produzir pra ir caminhar nas balls porque é o único lugar onde eu posso ser tudo e qualquer coisa, posso me vestir como uma princesa, posso me sentir a pessoa mais rica e elegante que existe, posso usar figurinos belíssimos e ser grande sem medo”, afirma a bailarina.

Diversidade

Independentemente do estilo, a dança representa para ela um campo de experimentação sobre as capacidades do corpo e da mente. A diversidade de linguagens levou Inara a estudar balé, house, hip hop e diferentes vertentes do vogue, entendendo cada uma como ferramenta para expressar sensações e narrativas distintas. “A dança é uma galáxia inteira, já dizia minha querida professora Gisèle Santoro, então é incrível conhecer mais, estudar mais e sempre ter alguma forma nova de expressão. A dança nunca acaba”, relembra com carinho. Para a bailarina, a dança compõe também seu espaço espiritual e seu propósito de vida, sendo descrita como necessidade vital.

Ao construir uma identidade própria dentro do Vogue New Way, Inara buscou conciliar elementos do balé com as bases da Ballroom. A ausência de referências locais fez com que o processo se desenvolvesse de forma particular, reconhecida por artistas mais experientes como uma assinatura própria. Para ela, unir a estética do balé, historicamente vinculada à elite europeia, ao vogue, nascido em comunidades negras e queer nos Estados Unidos, também é uma forma de ressignificar símbolos de elegância e protagonismo.

“Como eu não consigo separar minha dança da minha fé e da minha espiritualidade, a dança me trouxe propósito de vida e acho que só a arte consegue preencher essa minha necessidade de transcendência. Ao perguntarem à Madelyn Aamina 007, bailarina de Vogue renomada mundialmente, como ela definiria o Vogue, ela diz: ‘Vogue é uma expressão única de corpos queer e movimento queer, mas mais importante, é uma forma única de expressão do pensamento negro e de resistência negra. Vogue é alegria. Vogue é liberdade. Vogue é vida.’ E eu concordo”.

Premiação

Sobre a indicação recente a uma premiação internacional, a Ballroom Session People Choices Awards, Inara afirma que o reconhecimento representa confirmação de que o trabalho desenvolvido na cena brasiliense tem impacto e continuidade. Com dois anos de prática e participação na cena Ballroom, ela afirma que não esperava reconhecimento deste nível dentro da área. A artista comenta que sente que existe um legado a ser construído e a premiação seria mais uma prova e incentivo pra continuar neste caminho.

Ela recorda que, ao ser anunciada na House of Zion, ouviu que sua atuação contribuía para revolucionar o New Way no Distrito Federal, percepção que considera motivadora para seguir construindo um legado no estilo. “É como se fossem dois mundos parecidos, mas completamente diferentes. Parece uma viagem utópica, mas me sinto assim. Me sinto resistindo, ressignificando movimentos que não foram feitos pro meu corpo e tornando isso um símbolo de celebração”.

A artista continua atuando como bailarina, professora, coreógrafa e integrante da cena Ballroom, conciliando diferentes frentes de trabalho e mantendo pesquisa contínua em dança. Para ela, o campo artístico permanece em transformação e oferece possibilidades constantes de estudo, criação e expressão. “A dança é minha forma mais profunda de conexão comigo, com Deus e com o mundo; não é só minha profissão nem meu hobby, não danço porque quero me mostrar ou performar, danço porque eu preciso dançar como preciso beber água”, finaliza.