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Brasil já foi referência na indústria de terras raras

Tragédia radioativa em Goiás foi um marco no setor de extração | Foto: CNEN/Agência Marinha

Em 1949, uma indústria química no Brooklin, bairro de São Paulo hoje bastante movimentado e cheio de prédios luxuosos, começava a fabricar cloreto de terras raras. Esse era o nome dado ao produto que carregava 17 elementos da tabela periódica que quase oito décadas depois virariam o centro de disputa geopolítica entre duas potências - Estados Unidos e China.

Na época, a Orquima, fundada anos antes pelo poeta Augusto Frederico Schmidt e seu sócio, o químico Kurt Weill, tratava a monazita, mineral extraído na costa do país, com 60% de terras raras em sua composição. Entre elas, o európio, que fornecia o vermelho para a TV a cores, e o hoje cobiçado neodímio - fundamental na produção de ímãs para motores de carros elétricos e equipamentos de defesa.

"Nessa época, o Brasil era o terceiro ou quarto maior produtor mundial de cloreto de terras raras", diz Gilberto de Campos, que assumiria na década de 1980 a liderança desse processo industrial no país. Seu colega de trabalho, Simon Rosental, escreveu em um livro que a Orquima tinha um dos melhores padrões tecnológicos do mundo na época, ainda que não fosse capaz de separar todos os elementos.

A relevância era tamanha que o então presidente do país, Getúlio Vargas, visitou a empresa em 1954, meses antes de se suicidar.

No tratamento da monazita, no entanto, as terras raras eram subproduto; o interesse maior da empresa estava no tório, elemento radioativo presente em até 6% do mineral. O tório era matéria-prima das camisas de lampião e servia para gerar a luminescência branca no objeto. No final do século 19 e início do 20, essa era a principal fonte de iluminação pública.

A monazita também tem 0,3% de urânio. E foi essa porcentagem aparentemente pequena que fez o governo brasileiro, em 1960, estatizar a Orquima e minas de monazita na costa do país - o mineral vinha das areias do Rio de Janeiro, Espírito Santo e Bahia. À época, a Guerra Fria estava em seu auge, e poucos anos depois o Exército brasileiro daria um golpe de Estado, com apoio do governo dos Estado Unidos.

"Quando a empresa foi estatizada, essa separação dos elementos de terra raras começou a acontecer na estatal Nuclemon, na mesma fábrica da Orquima. Eles tinham que separar o urânio e o tório e entregá-los para a Comissão Nacional de Energia Nuclear, já que esses elementos passaram a ser monopólio do Estado", conta Paulo Sérgio Moreira Soares, pesquisador do Cetem, órgão público responsável por pesquisar tecnologias minerais.

"Por isso, o faturamento da empresa com a monazita passou a vir apenas das terras raras", acrescenta. As minas na costa brasileira também abrigavam ilmenita, rutilo e zirconita, outros minerais que na época eram vendidos pela Nuclemon.

Foi nessa época também, segundo o engenheiro químico Simon Rosental, que o breve sucesso do país com as terras raras começou a declinar. Em seu livro, ele pontua que as décadas entre 1960 e 1980 foram marcadas por poucas evoluções tecnológicas e raros investimentos em pesquisas e formação. "Isso ocorreu na mesma época e em direção contrária da dos países que atualmente são detentores de tecnologia", afirma, em referência aos chineses e japoneses.

Na década de 1980 o beneficiamento da monazita ganhou fôlego no país, devido ao interesse do Japão, que surgia no outro lado do mundo como polo tecnológico. Rosental conta que os japoneses assinaram um contrato com a Nuclemon para implantar uma unidade em Interlagos capaz de separar o cloreto de terras raras em outros dois produtos mais avançados na cadeia: o leve, que incluía o neodímio, e o pesado, com elementos de maior valor agregado.

O primeiro, de acordo com ele, retornava para a usina do Brooklin, que fabricava produtos para o mercado nacional. Já o segundo era exportado para o Japão, que tinha tecnologia para separá-los ainda mais, até chegar ao elemento necessário para a fabricação de dispositivos tecnológicos.

"O Japão nos ensinou a implantar e a operar a usina, mas não transferiu a tecnologia. Mas, a partir de 1990, desenvolvemos a tecnologia para obtenção dos óxidos individuais das terras raras em elevados graus de pureza; primeiro em bancada e por fim numa unidade semi-industrial no estado do Rio de Janeiro", diz Rosental à Folha de S.Paulo. Ele liderou esse processo na década de 1990, quando a Nuclemon já havia se transformado na INB (Indústrias Nucleares do Brasil).

Radioatividade incomodou vizinhos

Os altos e baixos dessa produção aconteciam ao mesmo tempo em que o Brooklin, até então um bairro com poucas casas, recebia mais e mais moradores, além de prédios e lojas. A presença de uma indústria química que tratava elementos radioativos começou, então, a incomodar a população local, que fazia pressão junto à prefeitura.

As queixas se somaram ao movimento de funcionários, que no final da década de 1980 atrelaram mortes de colegas à inalação do pó da monazita. "Quando fazíamos a purificação da monazita, gerava-se um pó e inalávamos a poeira, que ia para o pulmão. Era uma poeira radioativa e isso fazia muito mal", afirma José Venâncio Alves, 76, presidente da associação que defende esses funcionários - cerca de 40 teriam morrido desde 1984 devido às suas atividades na indústria.

A tragédia radiotiva de 1987 em Goiás despertou ainda mais as críticas, e a empresa decidiu fechar a usina em 1992.

O interesse à época era transferir o beneficiamento da monazita para Caldas, no interior de Minas Gerais, onde a INB já tinha instalações, mas a licença ambiental para a usina só ficou pronta em 2004, quando a China já havia desenvolvido uma técnica mais barata para produzir as terras raras, o que inviabilizou economicamente as operações brasileiras.

"Além disso, nesse intervalo eu me aposentei e a equipe técnica se desfez. Ou seja, com a licença em mãos não havia mais quem a operasse", afirma Rosental.

De acordo com Marisa Nascimento, pesquisadora do Cetem, o centro retomou as pesquisas sobre terras raras em 2010, quando técnicos experientes estavam no final da carreira. "Nessa época, ainda havia pessoas que tinham ido para China nas décadas de 1980 e 1990 e que vivenciaram isso. Mas, mesmo assim, é muito difícil sair da inércia e retomar as pesquisas e a produção. O mercado não te espera; esse é o grande desafio", afirma.

Hoje, a produção de terras raras no Brasil é feita apenas em Goiás, por meio da Serra Verde, que extrai outro tipo de minério - a empresa, no entanto, não chega a separar os elementos. Já a ADL, mineradora que ganhou os direitos sobre a mina da INB no Rio de Janeiro no ano passado, extrai apenas a monazita e não chega a produzir o cloreto de terras raras.