Uma balsa de 201 toneladas e 27 metros de cumprimento foi deixada à deriva no Porto de Aratu, em Candeias, na grande Salvador. Durante horas, este verdadeiro iceberg de aço flutuou sem luz ou sinalização em uma área que trafega navios cargueiros de grande porte e até navios militares, podendo provocar um desastre ecológico de proporções catastróficas.
Como a maré estava subindo, a balsa seguiu sua viagem até encalhar perto da Marina do navegador Aleixo Belloff. Para o resgate, foram usados dois barcos rebocadores que atracaram a balsa em um lugar seguro. Ela deverá ir para reforma em um dique seco.
Estas 201 toneladas à deriva foram uma amostra de um festival de fatos que estão ocorrendo na formação do maior porto privado da região metropolitana de Salvador e envolve, agora, diretamente o político empresário Carlos Suarez e o seu filho Gabriel Silva Suarez.
A Balsa foi colocada à deriva em um ato de pirataria e invasão da área portuária da GDK, pedaço nobre da parte privada do Porto de Aratu que há muito tempo vem sendo cobiçada pela Bahia Terminais, empresa da Família Suarez que tenta unificar os terrenos da Ford e da GDK. No dia 17 de julho, um dia após a decisão do vice-presidente no exercício da presidência do STJ, ministro Luiz Felipe Salomão, exatamente ao meio dia, 20 mercenários invadiram o terreno, avaliado R$280.000.000,00, em nome de uma empresa municipal da cidade de Candeias, a Companhia Docas de Candeias- CDC, e tomaram posse de um terreno, cuja soberania é da União.
Os brutamontes retiraram à força os trabalhadores da empresa Word Transportes LTDA., que ocupava a área em comodato em troca da vigilância. Colocaram no lado de fora do terreno motores e ferramentas. No píer da área estava a balsa de 27 metros de comprimento e 201 toneladas. Como piratas do Caribe baiano, sem nenhuma ordem legal, desamarram a gigante embarcação, deixando-a a deriva e colocando em risco os navios cargueiros na área.
Só faltaram içar no centro do terreno uma bandeira pirata, com caveira e dois fêmures cruzados, com a sigla CDC, algo parecido com as ações truculentas de outra facção de sigla com a mesma sonoridade, o PCC.
Em contato com o responsável pela ocupação da área, ocorrida sem mandado judicial, ordem de ocupação e decisão administrativa da Prefeitura, através do telefone (071) 98145-6833, o senhor que se apresentou como Marcos, afirmou que para mais informações seria preciso procurar o senhor Rodrigo Accioly, que esclarecia o ocorrido.Se não fosse o incidente com a gigantesca balsa à deriva, que resultou em queixa formal na Capitania dos Portos, que irá apurar a ação irresponsável, o assunto estaria restrito ao ciclo das vítimas e de protestos pontuais, já que grande parte da imprensa baiana tem feito um pacto de silêncio a todos os assuntos que envolvem o empresário Carlos Suarez, o S da antiga empreiteira OAS, tragada pela Lava Jato e seus negócios polêmicos envolvendo a área de gás em um modelo público-privado, que lhe valeu a alcunha de Rei do Gás e brigas com grupos com a JBS e abdução de parte do parlamento, até para derrubar vetos recentes do presidente Lula.
A ponta do iceberg
Por ironia, a balsa à deriva trouxe luz a uma série de decisões da justiça baiana que contrariam diretamente instâncias superiores. A invasão do terreno pela CDC ocorreu depois de uma segunda decisão do Superior Tribunal de Justiça, que considerou a área portuária alvo da pirataria como soberania da União, ou seja, competência da Justiça Federal. Esse jogo de xadrez começou quando a Prefeitura de Candeias resolveu criar sua própria companhia de Docas, uma atividade que é exclusiva da área federal. O Correio da Manhã, em uma denúncia premonitória em 12 de dezembro de 2024, revelou a manobra que seguiu sem menor pudor desafiando a soberania da União. A segunda mexida neste xadrez foi um decreto de desapropriação da área da GDK, com uma canetada do município sobre uma área da Marinha e do país. É aí que entra o STJ: sabem qual o valor que a Prefeitura definiu para indenização? Apenas R$ 3.154.936,00 (três milhões, cento e cinquenta e quatro mil, novecentos e trinta e seis reais), ou seja, um pouco mais de 1,3% de mercado do imóvel.
Como o Correio da Manhã alertou em dezembro de 2024 "O Município de Candeias publicou, em 2024, o Edital de Chamamento 01/24 para buscar interessados para participar da criação e do capital social da companhia. O documento estabelece que o capital social inicial será de R$ 1 milhão, sendo R$ 900 mil destinados a investidores privados e apenas R$ 100 mil reais à participação do município. Especialistas ouvidos pelo Correio da Manhã demonstram preocupação de que as exigências para os investidores sejam desproporcionais e limitadoras da concorrência. Por exemplo, o edital exige que os investidores tenham um capital social mínimo de R$ 100 milhões e experiência prévia em grandes projetos de infraestrutura, o que exclui pequenas empresas ou outras possíveis concorrentes.
Além disso, o processo de chamamento divide as ações em dois lotes: um destinado a investidores privados e outro a empresas estatais. Entretanto, o edital estabelece que, caso não haja interesse de empresas estatais no Lote 2, as ações seriam adquiridas pelos investidores privados, ampliando ainda mais seu controle sobre a companhia. O que chama a atenção é que qualquer aumento futuro no capital da CDC deverá manter os 60% do controle nas mãos dos investidores privados, consolidando ainda mais o domínio do setor privado sobre a operação portuária de Candeias".
A nossa redação deve ter usado bola de cristal, pois foi exatamente o que ocorreu. Houve o chamamento público e só o grupo de Carlos Suarez pode atender o edital. A Companhia Docas de Candeias foi criada em junho de 2025 e sabem quem são seus sócios gestores? Gabriel Silva Suarez, como o nome já indica filho do empresário Carlos Suarez, Carlos Antônio Ibiapina Junior (irmão do ex-prefeito de Candeias, Pitágoras, o idealizador da CDC e autor da desapropriação do terreno) e Walter Nunes Seijo Filho, diretor da ELETRORIVER S. A., empresa também do Rei do Gás. Com exceção do polêmico irmão do ex-prefeito de Candeias, a gestão da CDC é do filho e do dirigente de Suarez.
Desafiando o STJ
Como a balsa deixada à deriva era um Iceberg de aço, vale agora mergulhar na parte submissa deste negócio que usa a justiça baiana, que atropela as decisões de dois importantes ministros do STJ e tenta abduzir um terreno por apenas 1,3% do seu valor de mercado. Qual foi a engenharia para assumir o controle desta área utilizando a justiça para chancelar este negócio espetacular? Todos os pontos desta reportagem estão apoiados na transcrição de atos públicos, praticados nos autos de processos judiciais e decisões (e muitas vezes não decidir é decidir) de magistrados.
A próxima peça do jogo de xadrez era assumir o controle da companhia, no caso a gestão da GDK. Algo parecido já tinha ocorrido na CODEBA, Companhia Estatal Docas da Bahia. No caso da estatal foi bem mais simples, foram trocados os diretores. Os novos gestores, nomeados politicamente, limparam a pauta de conflitos com a Bahia Terminais, inclusive retirando uma ação que constava áreas da União entregues à empresa privada.
A GDK estava fragilizada como todas as construtoras depois da Lava Jato. O seu maior cliente era a Petrobras, que segurou pagamentos e hoje corre a cobrança judicial de R$ 800 milhões em 15 diferentes processos. A empresa chegou a ter 5 mil funcionários. A companhia entrou em recuperação judicial e o processo ficou com a juíza substituta Marcela Marques Barbalho da Silva, da 1ª Vara Empresarial. Reabilitado e com todas as certidões, a GDK começou a garimpar contratos e usar a sua experiência, principalmente na construção de dutos. Ao mesmo tempo procurava receber seus créditos na Petrobras, que somados equivaliam a 3 vezes o seu passivo. Tinha também entre os ativos a área portuária, com autorização de funcionamento e todas as autorizações da Secretaria de Portos e das agências reguladoras.
Na Ata da assembleia de credores de 1/2/2024, ficou decidido uma nova assembleia em até 180 dias, o que venceu em 1/8/2024. O plano de recuperação não tinha sido aprovado, mas ganhava tempo com a nova assembleia em agosto, convocação aprovada por 95,5% dos credores. O plano não foi aprovado naquela data por conta do voto do BNB - Banco do Nordeste, que alegou não ter tido tempo para analisar o documento. Como consignado em ata, haveria uma nova Assembleia em seis meses. A GDK tinha de créditos judicializados nominalmente e a área portuária quatro vezes a sua dúvida. Era uma empresa com nome no mercado e voltando à ativa.
No dia 29 de agosto de 2024, a juíza substituta Marcela Marques Barbalho da Silva decreta a falência da empresa sem que tenha sido pedida por nenhum credor e sem antes convocar a Assembleia aprovada por 95,5% dos credores. Esta foi a primeira coincidência favorável aos interesses do novo ocupante da área.
Falência decretada, é aberto um novo processo e para administrador judicial é nomeado o advogado Rodrigo Ribeiro Accioly, o mesmo administrador da Recuperação Judicial.
É importante registrar que o processo de desapropriação da área portuária da GDK pela prefeitura de Candeias, já visando a criação da sua Companhia de Docas, ocorre em plena recuperação judicial da construtora. A área, que valia quase R$300 milhões, foi reduzida em 99% do seu valor e virou objeto de uma disputa judicial. Isso afastou vários interessados. Foi uma coincidência que naufragou a busca de uma solução.
A Recuperação Judicial (RJ) foi instrumento criado no Brasil para ajudar as empresas a manterem sua atividade, preservar empregos e ficarem protegidas de execução. Nenhum legislador imaginava que um ativo de uma empresa em RJ poderia ser desapropriado por um valor venal e quase virar pó.
Festival de coincidências
Como administrador da massa falida surge uma nova coincidência favorável a Suarez. O advogado Rodrigo Ribeiro Accioly é sócio do Escritório Castro Oliveira, que tem como sócio Fabricio de Castro Oliveira, ex-advogado da OAS e advogado do holding da família Suarez em um processo contra um ex-sócio da família, que tem capítulos inacreditáveis e até criminais.
Outra coincidência é o fato de Accioly fazer parte do corpo diretivo da bicentenária Associação Comercial da Bahia, na gestão da atual presidente Isabela Suarez, irmã de Gabriel, diretor da CDC, e filha de Carlos.
Contatado pelo Correio da Manhã, Accioly, ao ser questionado sobre a invasão da área sob a gestão da massa falida, respondeu que estava agora contratando dois advogados para fazerem um levantamento do conflito de competência e da situação. Questionado sobre a Balsa de 201 toneladas deixada à deriva, ele insistiu em dizer que estava contatando novos advogados e que tinha destituído os anteriores, que não haviam sido nomeados pela massa falida.
Sobre o processo de desapropriação da área de 1,3% do valor de mercado, ele foi objetivo ao ser lembrado que nos autos da falência existem reiteradas propostas de uma empresa de logística com sócios internacionais que ofereceu, a vista, R$ 280.000.000,00. Proposta feita por petição que recebeu a aprovação da maioria dos credores, inclusive do Banco do Nordeste: "Não concordo com este valor de R$ 3 milhões", revelou o interventor judicial.
Uma coincidência é que a proposta da empresa, que está nos autos e com o de acordo dos credores, não recebeu até hoje nenhuma manifestação do administrador judicial e nem a juíza despachou sobre a petição. O Banco do Nordeste, inclusive, solicitou que fosse feito o boleto de recolhimento e aplicado uma multa no caso do não cumprimento da promessa. Neste item reina um silêncio entre os dois.
Na questão da tentativa de anular a desapropriação, uma primeira decisão do ministro Francisco Falcão foi ignorada pela justiça baiana. O STJ decidiu, em liminar, que a área não deveria ser entregue à Prefeitura/CDC. O caso seguiu como se o Superior Tribunal não tivesse se manifestado. Só agora uma decisão do ministro Luis Felipe Salomão, de 16 de julho, finalmente foi acarada. Salomão, vice-presidente no exercício da presidência do STJ e ex-corregedor-geral do CNJ, foi curto e grosso contra o desrespeito às decisões anteriores do ministro relator: "A decisão é clara ao afirmar que os documentos apresentados aos autos indicam que toda a área objeto dos decretos de desapropriação pertencem à União e que, por isso, cabe somente ao Juízo Federal decidir acerca de sua destinação.
Além disso, o Relator, em 22 de outubro de 2024 - antes, portanto, do acórdão do TJBA - já havia deferido liminar "para suspender qualquer ato que autorize a imissão do Município de Candeias na posse da área aforada pela União à GDK" (fls. 374-375).
Portanto, ao dar provimento ao recurso do Município de Candeias, na ação de desapropriação, "para garantir em favor do Município agravante, em definitivo, a imissão na posse do imóvel objeto da desapropriação" (fl. 777), o acórdão do Tribunal de Justiça da Bahia, salvo melhor juízo do Ministro Relator, está em desconformidade com a decisão do Superior Tribunal de Justiça.
O perigo da demora é evidente, uma vez que a indenização pela desapropriação já foi depositada em juízo e está prestes a ser transferida ao Juízo universal, o que indica que a imissão na posse teve prosseguimento a despeito da decisão do STJ.
Diante do exposto, defiro o pedido de tutela de urgência para suspender os efeitos do acórdão prolatado no Agravo de Instrumento 8059268- 91.2024.8.05.0000, bem como da decisão do Juízo da 1ª Vara Empresarial de Salvador/BA, que determinou a transferência de valores depositados na ação de desapropriação para conta vinculada ao Juízo falimentar.
Expeça-se ofício à 1ª Vara Cível da Comarca de Candeias/BA, à Presidência do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia, à 1ª Vara Empresarial de Salvador/BA e à 12ª Vara Federal da Seção Judiciária de Salvador/BA, para conhecimento e cumprimento desta decisão. MINISTRO LUIS FELIPE SALOMÃO, Vice-Presidente, no exercício da Presidência".
No processo da falência, a decisão da juíza substituta Marcela Marques Barbalho da Silva, havia determinado a transferência dos R$ 3 milhões depositados pela Prefeitura para a conta judicial da falência, o que consumava a desapropriação do terreno por apenas 1,3% do valor, se considerar a proposta de compra feita no processo e até hoje não analisada pelo administrador e pela magistrada.
Lembram da balsa à deriva que chamou atenção da mídia para este assunto? Com a decisão do ministro Salomão esvaziava o principal ativo da CDC, sabe qual foi a resposta à decisão do Presidente do STJ? Entraram na marra na área, expulsaram os ocupantes, colocaram maquinários na rua e deixaram uma balsa de 201 toneladas à deriva em uma área de grande movimento de navios de carga e até militares. Sem esse iceberg flutuante, o assunto seria abafado por parte da mídia baiana e o ministro Salomão não saberia que a sua decisão foi desonrada por um ato de pirataria.
*Diretor de Redação do Correio da Manhã