A Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados aprovou, na última quarta-feira (2), o projeto de lei que prevê a gratuidade do traslado de corpos de brasileiros que morrerem no exterior. Batizada de “Lei Juliana Marins”, a proposta estabelece critérios para que o transporte seja custeado pelo governo federal.
Entre os requisitos estão a comprovação de incapacidade financeira da família, inexistência de cobertura por seguro ou contrato de trabalho, falecimento em circunstâncias que causem comoção e disponibilidade orçamentária e financeira. O texto tem relatoria da deputada Carla Dickson (União-RN).
A proposta ganhou destaque após o caso da brasileira Juliana Marins, que morreu ao cair durante uma trilha no Monte Rinjani, na Indonésia. O Ministério das Relações Exteriores (MRE), havia informado que não poderia arcar com os custos do traslado do corpo, o que gerou comoção nas redes sociais.
Quando a comissão da Câmara aprova um projeto de lei, significa que a proposta foi considerada válida e pertinente pelas comissões temáticas responsáveis pela análise inicial, e agora está pronta para seguir para a próxima etapa do processo legislativo.
O presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), afirmou não ter conhecimento do decreto que impedia o apoio financeiro por parte do governo federal e revogou a medida. O corpo de Juliana chegou ao Rio de Janeiro, onde ela morava, na última terça-feira (1º). O traslado, no valor de R$ 55 mil, foi custeado pela prefeitura de Niterói (RJ).
Em publicação nas redes sociais, o presidente da comissão, deputado Filipe Barros (PL-PR), destacou que é preciso “dar tratamento digno aos familiares que sofrem em episódios tão trágicos como o ocorrido com Juliana”.
Turismo de aventura
Além do grave acidente que levou a brasileira Juliana Marins a óbito na Indonésia, quedas de balões, um quase acidente com stand up paddles no Rio de Janeiro e o resgate de duas jovens que se perderam durante o passeio em um trilha em Paulo Afonso (BA) reacenderam o alerta sobre a necessidade de regulamentação rígida e fiscalização efetiva para esse segmento do turismo, que vem crescendo nos últimos anos. A Federação Brasileira de Hospedagem e Alimentação (FBHA) manifestou solidariedade à conterrânea ferida no exterior e destaca o quanto é inadmissível que ainda faltem protocolos claros e aplicáveis, especialmente em atividades com risco evidente à integridade física.
No Brasil, a FBHA reitera a importância do trabalho já desenvolvido pela Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura (Abeta), que há anos apresenta propostas de normativas para garantir a segurança e a profissionalização do setor.
"A demora no socorro à brasileira na Indonésia nos choca e nos preocupa. Isso só reforça que o Turismo de Aventura precisa, urgentemente, de uma regulamentação clara no mundo todo. No nosso país, deve ser aplicada com o apoio do Ministério do Turismo (MTur), e da iniciativa privada. Sem normativas bem definidas e fiscalização eficiente, colocamos em risco vidas e a reputação do setor”, afirmou Alexandre Sampaio, presidente da FBHA.
Referência
Em nota enviada ao Correio da Manhã, o Instituto Brasileiro de Turismo (Embratur) disse que o Brasil é referência em segurança no turismo de aventura. Desde 2005, o país desenvolve normas técnicas de segurança para o turismo de aventura por meio da Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) e, desde 2009, coordena os trabalhos internacionais da ISO (Organização Internacional de Normalização) nesse setor.
Atualmente, são 44 normas técnicas vigentes no país, incluindo 19 internacionais — entre elas, a ABNT NBR ISO 21101, que estabelece o sistema de gestão da segurança e serve de base para a certificação com acreditação do Inmetro. Hoje, 20 empresas brasileiras possuem essa certificação.
A Embratur destacou ainda que, em parceria com o MTur, tem promovido ações para fortalecer o setor, como acordos de cooperação com a Associação Brasileira das Empresas de Ecoturismo e Turismo de Aventura (Abeta) e o Coletivo Muda!, voltados à promoção internacional do ecoturismo e do turismo responsável brasileiro.
O reconhecimento internacional, segundo a nota, é resultado direto desse esforço: em 2024, o portal US News & World Report classificou o Brasil como o melhor país do mundo para o turismo de aventura. “São prêmios e dados que nos ajudam a posicionar o Brasil como referência neste segmento e passar o recado de que o Brasil é um destino seguro, vasto e diversificado, onde os turistas podem viver experiências autênticas e inesquecíveis”, concluiu a Embratur.
Dificuldades no traslado
O caso de Juliana Marins não foi o primeiro a ter grande repercussão negativa em relação à dificuldade de apoio, por parte do governo, no traslado de corpos. Em 2023, um acidente fatal tirou a vida de um brasiliense que morava em Londres. Cristopher de Carvalho Guedes, de 26 anos, pilotava uma motocicleta quando foi atingido por um carro da polícia britânica que, segundo a família, teria avançado o sinal vermelho. O acidente ocorreu em outubro daquele ano.
Diante do alto custo do traslado, estimado em R$ 100 mil, os parentes iniciaram uma campanha de arrecadação para viabilizar o retorno do corpo a Brasília. Em entrevista, Thaísa Carvalho Guedes, irmã da vítima, relembrou o caso. Com pesar, destacou como situações semelhantes envolvendo outros brasileiros continuam acontecendo, e lamentou a constante falta de amparo nessas circunstâncias.
“Como irmã do Cristopher, posso dizer que lidar com sua morte tão repentina em Londres foi uma das experiências mais difíceis da minha vida. A dor da perda já é imensa, mas ela se torna ainda mais pesada diante das dificuldades que enfrentamos com o translado do corpo para o Brasil”, destacou Thaísa.
Assim que a família soube do acidente, entrou em contato com o consulado brasileiro no Reino Unido e também com o Itamaraty. No entanto, o apoio que era esperado não veio.
“Houve falta de informações, respostas demoradas e uma sensação constante de que estávamos sozinhos naquele momento tão crítico. Toda a parte burocrática — desde documentação até os altos custos do translado — ficou sob responsabilidade da nossa família, sem qualquer tipo de auxílio financeiro ou logístico por parte das autoridades brasileiras”, relatou.
Após a confirmação de que o Itamaraty não arcaria com as despesas do traslado, a família foi obrigada a mobilizar, por conta própria, uma rede de apoio que incluía brasileiros, americanos, portugueses, ingleses e canadenses. Essas pessoas se solidarizaram com a situação e ajudaram a levantar a quantia necessária não apenas para trazer o corpo da vítima, mas também para custear o retorno da esposa de Cristopher e de dois acompanhantes.
“Compartilho isso na esperança de que mais atenção seja dada às famílias brasileiras que passam por esse tipo de tragédia no exterior. Nenhuma família deveria ter que lidar com tanta dor e, ao mesmo tempo, se ver perdida diante da falta de suporte do próprio país”, finalizou.
Garantia de segurança
A Secretaria de Turismo do Distrito Federal (Setur-DF) reconheceu a importância de garantir a segurança de visitantes e moradores que praticam atividades de ecoturismo e turismo de aventura em todo o Distrito Federal, especialmente em áreas de difícil acesso ou com risco geográfico. Em parceria com órgãos do Governo do DF, a Setur-DF informou que apoia iniciativas voltadas à sinalização, manutenção e mapeamento, principalmente de trilhas. As rotas mais visitadas integram as Rotas Turísticas da secretaria e, por isso, recebem atenção especial na estruturação e promoção responsável.
O órgão também incentiva que moradores e visitantes contratem profissionais cadastrados no Cadrastur — o sistema nacional que reúne guias e operadores de turismo — promovendo práticas seguras nas atividades em ambientes naturais.
Um longo percurso
De acordo com Marco Antonio Araújo Júnior, advogado e presidente da Comissão Especial de Direito do Turismo, Mídia e Entretenimento do Conselho Federal da OAB, o turismo de aventura no Brasil ainda apresenta lacunas significativas em termos de regulamentação específica, fiscalização e padronização de segurança. Embora a nova Lei Geral do Turismo (Lei nº 14.978/2024) represente um avanço importante ao modernizar o marco legal do setor, ela ainda não disciplina de forma detalhada as exigências técnicas e operacionais para atividades de risco, como o balonismo, o rafting ou o voo livre.
“Nesse sentido, é urgente que a regulamentação infralegal da nova lei incorpore normas técnicas obrigatórias — como a ABNT NBR ISO 21101, que trata da gestão da segurança em atividades de aventura —, bem como mecanismos de certificação e qualificação dos operadores. Além disso, é necessário integrar as ações de fiscalização entre os órgãos federais, estaduais e municipais, além de criar um protocolo nacional de segurança para o turismo de aventura”, destacou o advogado.
A ausência de regulamentação detalhada não afasta a responsabilização dos operadores turísticos. O Código de Defesa do Consumidor (CDC) estabelece a responsabilidade objetiva dos prestadores de serviços, o que segundo Marco Antonio, significa que o operador poderá ser responsabilizado por danos causados, independentemente de culpa, bastando que se comprove o defeito no serviço e o dano causado.
“No plano penal, a falta de adoção de medidas mínimas de segurança ou a atuação sem habilitação técnica pode configurar crimes como lesão corporal culposa ou homicídio culposo, previstos no Código Penal. A jurisprudência tem reconhecido, inclusive, a responsabilidade criminal de operadores que colocam em risco a integridade física dos turistas ao negligenciar cuidados básicos”, concluiu.